Arthur Rimbaud faz parte daquela galeria legendária de artistas que agregou ao brilho da sua obra o aspecto mítico do subversivo. De poeta marginal ao errante em terras africanas. O vate de inquietantes olhos azuis que arruinou a reputação de Verlaine ou que apenas serviu como detonador da autodestruição do mestre decadente. Talvez, para Rimbaud, a poesia tivesse tomado ares de um caminho bolorento e apático. O enfant terrible convertido ao catolicismo no leito de morte.
Van Gogh encontrou no suicídio o passaporte que rompeu com a servidão imposta pela arte para preservar sua saúde mental, Rimbaud renunciou ao poeta para mergulhar na aventura do desconhecido e nas empreitadas comerciais pelos desertos da Somália e Etiópia. Dois gumes da mesma faca, o talento se revelando como a vocação do trágico.
O holandês Van Gogh e o francês Rimbaud, duas linhas soltas que atraem o nosso mórbido fascínio. Um abraçou a pintura com o extremo da paixão, erguendo uma ponte frágil entre a loucura e a sanidade. O outro rejeitou a própria poesia com o mesmo asco com que repudiou Verlaine, um obstáculo entre ele e a sua sina de se sentir vivo. Não surpreende que os dois ícones tenham sido contemporâneos e morrido, ambos, aos 37 anos.
Um pintor e um poeta, ambos batizados pelo vício do absinto, ébrios da desolação em busca de consolo. Van Gogh fazia da arte a alienação para a sua alma compulsiva, um emplastro para a loucura sempre à espreita. Rimbaud renegou a arte para afirmar sua vontade de viver e até enriquecer, seguindo as correntes vertiginosas da adrenalina.
“A vida está em outro lugar” – escreve o jovem Rimbaud em seu diário, antes de deixar a casa da mãe.
“Dizem que na pintura não se deve procurar por nada, nem nada esperar, além de um bom quadro... Talvez seja verdade, e por que recusar-se a aceitar o possível, sobretudo se assim fazendo enganamos a doença?” – Assim, Van Gogh divaga em uma das cartas ao irmão Theo.
A linha tênue e comum entre os dois é a angústia do inconformismo, um desejo urgente de identificar o sentido de existir. Rimbaud e Van Gogh são personagens que refletem as duas faces cruciais da nossa humanidade: o poeta quer agarrar a loucura para se sentir vivo, o pintor quer escapar dela para continuar vivo.
Pelas cores ou pelas palavras, vagando por desertos selvagens ou por quartos de hospícios, rejeitando ou idolatrando qualquer manifestação estética, a poesia persiste nos dois e é a poesia que constrói neles o folclore e a tragédia que os perpetuaram.
Van Gogh soma inusitado valor aos seus quadros pelos relatos fartos e deslumbrantes que nos legou através das correspondências com seu irmão Theo. Já Rimbaud nos seduz pela imensa lacuna que marca a sua vida após abandonar a poesia e se tornar um aventureiro numa jornada de poucos registros e muitas especulações. Van Gogh disseca-se, Rimbaud ausenta-se.
Qualquer biografia que cite esses dois artistas irá salientar uma interseção evidenciada na instabilidade do comportamento e na conturbada incapacidade de convivência social. Muitas vezes na história se constatou a mais intrigante faceta da genialidade, aquela que transporta uma caótica desordem emocional para uma obra de perturbadora harmonia. É nessa categoria de gênios que estão incluídos Vincent Van Gogh e Arthur Rimbaud.
A perenidade das imagens que eles usam para decifrar o mundo é uma fonte interminável de encantos.
Rimbaud escreveu: “Ela foi encontrada / Quem? A eternidade / É o mar misturado ao sol / Minha alma imortal, / cumpre tua jura / Seja o sol estival / Ou a noite pura. / Pois tu me liberas / Das humanas quimeras, / Dos anseios vãos! / Tua voas então... / - Jamais a esperança. / Sem movimento. / Ciência ou paciência, / O suplício é lento / Que venha a manhã, / Com as brasas de Satã, / O dever é vosso ardor / Ela foi encontrada! / Quem? A eternidade. / É o mar misturado ao sol.
Desta forma, Van Gogh descreve um dos seus quadros para Theo: “Ufa – o ceifeiro está pronto, acho que é dos que você porá em sua casa – é uma imagem da morte tal como nos fala o grande livro da natureza – mas o que eu procurei foi aquele “quase sorrindo”. É todo amarelo, exceto uma linha de colinas violetas, um amarelo pálido e loiro. Acho engraçado que eu tenha visto assim através das grades de ferro de uma casa de loucos.”
Definitivamente, num universo que se nutre da obviedade das coisas, o que transforma homens em lendas são os olhos do infinito.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014
segunda-feira, 6 de outubro de 2014
A FALÊNCIA DO ROMANCE BRASILEIRO
A era digital inseminou uma crise na
literatura brasileira: o colapso da criatividade.
Observando o cenário nacional e focando nos jovens escritores, o que vemos é um painel que nos remete ao século 19, quando os importados da língua francesa e inglesa trouxeram as primeiras sementes de fertilidade para os autores brasileiros. O que testemunhamos hoje são aqueles mesmos romances adocicados, moralizantes (alguns, com viés evangélica), a exacerbação do sentimentalismo, o didatismo e a fantasia gótica. Os que fogem das velhas receitas enveredam por temas subversivos que flutuam no superficial, se limitando a meras apologias devido a uma abordagem precária, nessa categoria se encaixam os romances que versam sobre violência gratuita e decadência da sociedade. Há outros dois modelos em voga, um existencialismo maçante e um erotismo tacanho que tem muito a aprender com o Marquês de Sade. O romance, como gênero literário, involuiu. Há uma tendência retrógrada que se enraizou, apesar do irresistível convite que nos oferece este admirável mundo novo.
No Brasil, a incapacidade autoral para espelhar de maneira autêntica e profunda os novos tempos evoca como causas o esfacelamento do sistema educacional, a mutilação da cultura e a submissão das editoras à colonização intelectual imposta pelo estrangeiro. O número de consumidores de livros cresceu desde a consolidação do romance no país, mas a qualidade dos escritores e leitores sofreu uma implacável erosão. A crescente comercialização de livros, paradoxalmente, não incide no aumento da quantidade de leitores, fato comprovador da tese que afirma que livros se tornaram objetos de colecionador, firulas decorativas. Livros deixaram de ser formadores da consciência crítica.
É preocupante quando constatamos que uma das peças mais pulsantes e revolucionárias da nossa literatura continua sendo “Memórias póstumas de Brás Cubas”, escrito em 1881. Sob o pretexto do lucro, instalou-se a lógica mercantilista dos nichos literários que movimentam as vendas e impõe rédeas curtas à criação.
A leitura e a escrita exigem a imersão absoluta dos seus apóstolos, atitude que afronta o imediatismo ruidoso e consumista dos dias correntes. O século 21 escolheu a velocidade, a dinâmica, as mudanças e a constante evolução. Na contramão, a literatura quer fabricar calhamaços, cultivar a estagnação, teima em ser arcaica. Como essa arte que venera o anacrônico pode sobreviver entre indivíduos que amanhecem ansiando pisar no futuro? Passado é vocábulo morto e o presente é peça de museu num universo onde se vive no amanhã.
Observando o cenário nacional e focando nos jovens escritores, o que vemos é um painel que nos remete ao século 19, quando os importados da língua francesa e inglesa trouxeram as primeiras sementes de fertilidade para os autores brasileiros. O que testemunhamos hoje são aqueles mesmos romances adocicados, moralizantes (alguns, com viés evangélica), a exacerbação do sentimentalismo, o didatismo e a fantasia gótica. Os que fogem das velhas receitas enveredam por temas subversivos que flutuam no superficial, se limitando a meras apologias devido a uma abordagem precária, nessa categoria se encaixam os romances que versam sobre violência gratuita e decadência da sociedade. Há outros dois modelos em voga, um existencialismo maçante e um erotismo tacanho que tem muito a aprender com o Marquês de Sade. O romance, como gênero literário, involuiu. Há uma tendência retrógrada que se enraizou, apesar do irresistível convite que nos oferece este admirável mundo novo.
No Brasil, a incapacidade autoral para espelhar de maneira autêntica e profunda os novos tempos evoca como causas o esfacelamento do sistema educacional, a mutilação da cultura e a submissão das editoras à colonização intelectual imposta pelo estrangeiro. O número de consumidores de livros cresceu desde a consolidação do romance no país, mas a qualidade dos escritores e leitores sofreu uma implacável erosão. A crescente comercialização de livros, paradoxalmente, não incide no aumento da quantidade de leitores, fato comprovador da tese que afirma que livros se tornaram objetos de colecionador, firulas decorativas. Livros deixaram de ser formadores da consciência crítica.
É preocupante quando constatamos que uma das peças mais pulsantes e revolucionárias da nossa literatura continua sendo “Memórias póstumas de Brás Cubas”, escrito em 1881. Sob o pretexto do lucro, instalou-se a lógica mercantilista dos nichos literários que movimentam as vendas e impõe rédeas curtas à criação.
A leitura e a escrita exigem a imersão absoluta dos seus apóstolos, atitude que afronta o imediatismo ruidoso e consumista dos dias correntes. O século 21 escolheu a velocidade, a dinâmica, as mudanças e a constante evolução. Na contramão, a literatura quer fabricar calhamaços, cultivar a estagnação, teima em ser arcaica. Como essa arte que venera o anacrônico pode sobreviver entre indivíduos que amanhecem ansiando pisar no futuro? Passado é vocábulo morto e o presente é peça de museu num universo onde se vive no amanhã.
A supremacia fotográfica da TV e do cinema fizeram a indústria dos roteiros prosperar. Séries americanas são cultuadas por estarem em sintonia com as expectativas do homem coletivo gerado pela Internet. Já os romances, excetuando-se os best-sellers, ganham mais visibilidade quando são adaptados para o cinema ou TV, justamente pelo processo em que são lapidados, num modelo de narrativa ágil e objetiva.
Não é à toa que o conto recuperou o fôlego como gênero literário. Forma breve que transmite histórias, imagens e pensamentos numa configuração que consegue acompanhar as necessidades da prosa moderna. No hiato do ciberespaço a poesia também se reergue com sua índole intrépida, navegando por mares inexplorados.
Editoras que atuam em nosso solo, antes importadoras de títulos estrangeiros, mantêm diretrizes caducas quando condicionam recrutar apenas escritores brasileiros que estejam dispostos a produzir os velhos romances sobre mocinhas. É curioso que novos conceitos se vendam como razão social para a ressurreição de exercícios estéticos bolorentos. Definitivamente, o romance brasileiro não somente estagnou, ele retrocedeu ao abdicar das virtudes retóricas daqueles que fundaram as suas bases estilísticas.
Na verdade, é possível que o século 19 fosse até mais avançado na motivação à criatividade. Gabinetes de leitura, bibliotecas, livrarias e uma fartura de jornais difundiam e propagavam obras literárias. Saraus preservavam o hábito da leitura em voz alta e faziam proliferar os círculos de ouvintes que, no final das contas, engrossavam o conjunto de leitores.
Na Internet, as redes sociais e os sites se valem, prioritariamente, da palavra escrita. É do senso comum que a revolução tecnológica valorizou e disseminou o ato de escrever como nunca se teve notícia. No entanto, esse destaque não se expressou em níveis qualitativos, pelo contrário, o texto foi pasteurizado.
Por algum motivo, emerge uma intrigante sensação no espírito humano, relegamos ao esquecimento a nossa mortalidade. Com isso, anulou-se a urgência de registrarmos o que nos rodeia e as impressões que marcam as nossas vidas. Somos X-Mens, Vingadores, Super-Homens, seres mutantes em que se alastra a virulência da alienação.
Atribuem a Cervantes o título de precursor do romance moderno e em Dom Quixote de La Mancha consta um episódio de forte simbolismo na interpretação que Otto Maria Carpeaux expôs no artigo “Cervantes e o leão”. Dom Quixote, com lança em punho, ao cruzar com uma carroça que transportava bravos leões engaiolados, desafiou o carroceiro para que abrisse uma das jaulas. Receoso, o sujeito abriu a jaula e libertou o macho. O leão saiu, olhou em volta e retornou ao fundo da jaula, desprezando o atrevimento do cavaleiro da triste figura. Carpeaux explica que aquele leão não é o símbolo da realidade triunfadora, é um bicho medroso e banal que prefere o conforto seguro do aconchego, mesmo que seja na jaula. Assim se comportam as editoras e os jovens autores que se submetem aos grilhões do mercado, desprezam a audácia em favor do bálsamo morno do óbvio e da vaidade. A vanguarda é para os ousados.
O filósofo húngaro Georg Lukács classificava o romance como uma epopeia burguesa e analisava com rigor o contraponto entre narrar e descrever. Para ele, a narrativa constrói o objetivo social do romance. Infelizmente, se considerarmos Lukács, somaremos outro ponto negativo para a literatura fabricada por nossos autores neófitos, sempre mais afeita às minúcias descritivas que compõem o quadro alienante.
Haverá os que acusarão este digno articulista de se empenhar numa crítica generalizada. O que se vê quando subimos ao alto de uma montanha? A paisagem que predomina ou os pequenos recantos camuflados? A regra obstrui as exceções. Importa ressaltar que o romance viveu diversos dilemas e a partir deles se renovou.
Que um Quixote se insurja entre a geração Blade Runner e traga à luz a obra que irá mapear o território cibernético do homem virtual. Que em um de nós, replicantes, haja o destemor capaz de romper o vácuo do status quo.
terça-feira, 16 de setembro de 2014
A BIBLIOTECA DE VAN GOGH - LEITURAS ILUSTRES
Quando a Diretora Global de Educação do Banco Mundial (Bird), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) curte um texto que você escreveu, a gente fica um pouco mais feliz.
Obrigado pela leitura Claudia Costin.
Obrigado pela leitura Claudia Costin.
sexta-feira, 12 de setembro de 2014
A BIBLIOTECA DE VAN GOGH
Inúmeras vezes, nas cartas ao irmão Theo, Vincent
Van Gogh discorre sobre literatura com a argúcia de um crítico e a paixão de um
leitor voraz. A literatura é um tema tão
recorrente para Van Gogh que nem nos surpreendemos quando ele confessa que
poderia tê-la escolhido como meio de expressão, caso a pintura não houvesse se
afirmado em sua vida.
A bipolaridade emocional que o assolava afastou os
amigos, incendiou o pavio das severas crises de depressão que sofreu, mas
raramente o impediu que se dedicasse com afinco à criação dos seus quadros e à
leitura intensa. Duas fortalezas resistiram até o fim na alma de Van Gogh, a
pintura e os livros.
Quem não pensa em Van Gogh também como um escritor
certamente não leu suas cartas, um valioso acervo literário e histórico. E
Vincent não se restringia a escrever, ele pensava sobre literatura. A rica
correspondência com Emile Bernard, um pintor que se arriscava como poeta,
demonstra sua lúcida habilidade em avaliar textos.
Não foi à toa que o perfil mais visceral de Van Gogh
foi desenhado por um escritor francês que nos deixou o manifesto intitulado “Van Gogh, o suicida da sociedade”, de
Antonin Artaud:
“Não,
Van Gogh não era louco, mas suas pinturas eram bombas atômicas, cujo ângulo de
visão, ao lado de todas as outras pinturas polêmicas da época, foi capaz de
abalar gravemente o conformismo larvar da burguesia” ...
Continua sobre Van Gogh:
“E
o que é um autêntico alienado? É um homem que preferiu torna-se louco, no
sentido em que isso é socialmente entendido, a conspurcar uma certa ideia
superior da honra humana. Foi assim que
a sociedade estrangulou em seus asilos todos aqueles dos quais ela quis se livrar
ou se proteger por terem se recusado a se tornar cúmplices dela em algumas
grandes safadezas. Porque o alienado é também o homem que a sociedade se negou
a ouvir e quis impedi-lo de dizer insuportáveis verdades”.
“Há
em todo demente um gênio incompreendido em cuja mente brilha uma ideia
assustadora e que só no delírio consegue encontrar uma saída para as coerções
que a vida lhe preparou”.
A pintura de Van Gogh está ligada, numa comunhão
indissolúvel, à obra escrita que ele nos legou através das suas cartas. Uma
complementa a outra. Daí sua fama e sua história precederem e predominarem
sobre a arte que ele produziu.
Protagonista de amores obsessivos, do famoso caso em
que decepa a própria orelha para entregar a uma prostituta, dos acessos de
fúria, dos mergulhos profundos na melancolia. Tudo em torno de Van Gogh o
rotulava como louco, mas as suas maiores predileções literárias espelhavam um
homem romântico e voltado para a razão. Era um pintor que valorizava a palavra,
conforme revela ao amigo Emile Bernard em uma de suas cartas:
“Há
tanta gente, especialmente entre nossos camaradas, que imagina que as palavras
não significam nada – pelo contrário, a verdade é que dizer uma coisa bem é tão
interessante e difícil quanto pintá-la. Há a arte das linhas e das cores, mas
também existe a arte das palavras, e esta permanecerá”.
Destacava a importância que via na criatividade:
“Um
homem pode ter uma soberba orquestração de cores e não ter ideias”.
A admiração incondicional de Van Gogh por Émile Zola
demonstra o fascínio que o racionalismo científico lhe causava. Zola é citado incontáveis
vezes em suas correspondências.
“Chegando
à França como um estrangeiro, eu, talvez melhor do que os franceses nascidos e
criados aqui, senti o que havia em Delacroix e em Zola; e a minha admiração
sincera e total por eles não conhece limites”.
“Em
sua qualidade de pintores de uma sociedade, de uma natureza tomada em sua
plenitude, assim como Zola e Balzac, produzem raras emoções artísticas naqueles
que os amam, justamente porque eles abrangem a totalidade da época que
descrevem”.
Vincent exprimia muitos elogios aos autores
franceses, principalmente os do século 19, com exceção de Baudelaire, por quem
nutria certa implicância por ter criticado pintores que ele idolatrava.
“Vamos
tomar Baudelaire por aquilo que ele realmente é: um poeta moderno, do mesmo
modo que Musset, mas que ele deixe de se meter a falar de pintura”.
Em uma das cartas comenta que estudou um dos livros
de Víctor Hugo: “O último dia de um
condenado”, um manifesto contra a pena de morte que suscitou enorme
repercussão ao ser publicado. Há trechos em ele faz referências a Guy de
Maupassant. Lia historiadores, como Jules Michelet, para conhecer a história da
Revolução Francesa. Mas Van Gogh não deixava de praticar algum ecletismo literário
quando fala das suas leituras de Shakespeare, Charles Dickens, Beecher Stowe,
Ésquilo, da bíblia e dos evangelhos.
“Meu
Deus, como é belo Shakespeare. Quem é misterioso como ele? Suas palavras e sua
maneira de fazer equivalem a um pincel fremente de febre e emoção. Mas é
preciso aprender a ler, como é preciso aprender a ver e aprender a viver” (Van
Gogh em Cartas a Theo)
É de Van Gogh uma das mais belas sentenças que
podemos encontrar sobre a nossa humanidade em qualquer literatura.
“Eu
também gostaria de saber aproximadamente o que é que eu sou. Talvez eu seja a
larva de mim mesmo’. (Carta a Emile Bernard)
Ao terminarmos de ler as cartas de Vincent, nos
sucede um sonho encharcado de frenética juventude, mas um súbito cansaço nos
envelhece. Colocamos de lado aquele velho chapéu de palha, rodeado de velas
acesas, que usamos para romper a noite em que pintamos luzes febris na tela
branca. Velas que se apagaram com o silêncio em luto dos corvos sobre os campos
de trigo.
terça-feira, 9 de setembro de 2014
ESCREVER - A VOCAÇÃO PARA O AVESSO DAS COISAS
O
escritor é o avesso - desde a adolescência foi como defini
esse personagem mergulhado no vácuo, buscando na própria dissolução construir
com as palavras um universo que sempre revela a alma daquele que escreve.
Alguns escritores se apressam em dizer que não fazem da prosa ou da poesia um
confessionário, quem diz isso é um mentiroso, porque todo escritor mente sobre
suas reais intenções. Não há literatura sem algum tipo de confissão, que venha
ela criptografada, envernizada ou camuflada. Talvez, escrever seja dizer a sua verdade
fingindo que é a verdade do outro.
“O poeta é um
fingidor” - sentenciava Fernando
Pessoa.
E foi com Pessoa que eu vivi a primeira epifania
literária. Adolescente, de férias num sítio em Petrópolis, puxo à revelia um
livro da biblioteca e me deparo com quatro versos que agiram em mim como a Pedra
Filosofal. Transformaram meu infantil pensamento de jovem burguês numa avassaladora
consciência crítica. A implosão de um mundo ilusório deu lugar às ruínas que
formam a realidade.
“Os Deuses
vendem quando dão,
Compra-se
a glória com desgraça,
Ai
dos felizes, porque são
Só
o que passa!”
Versos clássicos que constam em “Mensagem”. Por anos a fio essa estrofe
me assombrou, dela desabrochou uma incurável inquietação. Todo o sentido fugaz
que a vida parecia ter na juventude desapareceu diante da desconstrução abissal
que a poesia é capaz de causar. Fernando
Pessoa me apresentou ao avesso e foi a primeira vez que sonhei a pretensão
de ser escritor.
Escrever parecia simples, parecia fácil no início.
Na primeira página em branco descobrimos que é preciso adestrar a emoção pela
razão, que é crucial domar a palavra. Quando nascem as primeiras linhas, os
primeiros parágrafos, o texto ganha o efeito de um espelho nos impondo o
sentimento de uma obra incompleta, incapaz, simplória. É sincero quem diz que
escrever é cultivar a dor. Mas por que escrevemos? Porque algum livro, num período
qualquer, nos convenceu. Quem escreve vicia no isolar-se em si mesmo, habitua-se
ao silencioso deslizar da caneta ou ao tique ritmado do teclado costurando
nossos fragmentos para nos ampliar em narrativas, versos ou em outros
fragmentos que almejam nos trazer sentido. Quem escreve escolhe existir no
avesso das coisas que Drummond
exaltou.
Acredito que todo escritor nasce de um Big Bang íntimo, sucessivas implosões
que o capacitam a criar as maquetes impalpáveis que se erguem nos livros.
A minha segunda implosão viria quando conheci um
escritor de fato: Víctor Giudice, pai
de um querido amigo. Víctor era a antítese do que eu imaginava de um escritor.
Carismático, divertido, um magistral contador de histórias. Éramos um grupo de
amigos, todos muito jovens, e passávamos horas ouvindo entusiasmados os causos
do Víctor. Meu primeiro contato com a sua obra foi a leitura de um conto
chamado “O Arquivo”, uma fantástica jornada
ao avesso de um homem.
Até conhecer o Víctor eu pensava em fazer Biologia,
depois de conhece-lo fiz o vestibular para Letras. Ao ser aprovado, foi o Víctor
que me levou para conhecer o campus da UFRJ. Este episódio me recordou um filme
americano, repleto de clichês, intitulado no Brasil como “Encontrando Forrester”, Sean
Connery fazia o papel de um escritor que tutelava um rapaz talentoso, mas
em conflito com sua aptidão. Existem pessoas que podem fortalecer nossa opção
por um caminho que hesitávamos seguir.
A terceira implosão veio com duas frases que iniciam
a “Hora da Estrela”, de Clarice Lispector.
“Tudo no mundo
começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”.
Foi quando disse sim e confrontei meu avesso. Que eu
seja simplório, inacabado, incompleto, mas literatura remendaria meus retalhos,
escrever anunciava a única redenção possível.
Escrever
é estar no extremo de si mesmo – ensina João Cabral de Melo Neto.
Antes da Internet,
dos Blogs e das Redes Sociais, a leitora mais dedicada de um aspirante a
escritor eram as gavetas. Hoje temos o privilégio que muitos não alcançaram e
podemos compartilhar, sem fronteiras, os textos que produzimos. Uma benção. Às
vezes, uma tragédia.
“Chego, agora,
ao inefável centro de meu relato, começa aqui meu desespero de escritor. Toda
linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os
interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que
minha temerosa memória mal e mal abarca?” (O Aleph – J.L.Borges)
Jorge
Luiz Borges trouxe o meu desespero, na grandeza
absoluta e inquestionável da sua narrativa. O Aleph me mostrava a distância entre escrever e ser escritor, o
abismo entre o gênio e o medíocre. O Borges cego, que germinou numa biblioteca,
me fez aceitar o inalcançável, mas também me convenci que o único patrimônio de
uma vocação é a insistência.
“Muitas vezes
pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista por um autor que
quisesse – isto é, que pudesse – pormenorizar, passo a passo, os processos
pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento.
Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que não sei
explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa
omissão do que qualquer outra causa.”
(A Filosofia da composição, de E.A.Poe)
No século 19, Poe
reclamava do egoísmo didático dos autores eméritos. No século 21, escritores de
talento questionável ganham dinheiro ensinando banalidades com seus métodos
pasteurizados. Sim, o tempo muda os hábitos e precisamos saber se há benefício
nisso. Recebo como afronta quando alguém afirma, com gesto largo e orgulhoso,
que faz literatura comercial. Como? A língua é legado e a palavra é um
patrimônio, jamais pode servir ao mercado ou à vaidade, a natureza da palavra é
partilhar.
Alguém poderá me censurar quando eu disser que nunca
me interessei em aprender a escrever dissecando formalmente as obras dos
grandes mestres.
“O que tem de
bom na galinha assada é que ela não cacareja” – esclarecia Quintana em Poemas para a Infância.
A leitura eficiente não quer radiografar o método,
quer saborear os temperos e assim decifrar a receita. Não tenho fé em nenhum
bom escritor que negue ter brotado de leituras honestas e vastas. Os legítimos
escritores foram persuadidos a escrever por algum livro que os arrebatou. Fiz
Letras sem nunca me apegar a erudição cirúrgica da autópsia literária.
“A primeira
condição de quem escreve é não aborrecer” – me avisa, somente agora, Machado de Assis.
Pois termino aqui meus devaneios com a única máxima
que me faz desejar aprender e ir adiante: escrever é seduzir.
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
FASHION WEEK LITERÁRIA
Em 1873, Machado de Assis escreveu um dos seus
melhores artigos: “O instinto de
nacionalidade”. O texto, ainda hoje atualíssimo em seu corpo de ideias,
mostra o amadurecimento e a formação da identidade literária brasileira a
partir das bases construídas por autores do século 19. Machado indica que é na
essência nacional e no domínio do idioma que reside a independência da
literatura de qualquer país. A visão de
Machado sobre o papel do escritor é de tamanha e paradoxal contemporaneidade
que nos permite estabelecer um diálogo atemporal através de comentários.
Machado
de Assis - Quem
examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço,
certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do
pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há de negar que
semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro.
Não
há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabelecendo doutrinas absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do
escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço.
* Relendo as considerações de Machado, quase podemos
acreditar que a nossa literatura ficou estagnada no estágio da adolescência,
poucos passos lançamos à frente, breve foi o leque que se abriu. Não
ultrapassaram um punhado de nomes os autores modernos que buscaram refletir
nossas raízes e que se tornaram universais por serem genuinamente nacionais no
uso da língua que decifra e espelha o ambiente e o seu tempo. A maioria dos
jovens escritores brasileiros estão empenhados em copiar fórmulas importadas e
modismos temporários. Raros são as mudas de criatividade que brotam em terra
tão árida. Alguns autores conseguem reverberar a ausência de identidade em pretensos
romances existenciais vagos e supérfluos.
Machado
de Assis – Estes
e outros pontos cumpria à crítica estabelece-los, se tivéssemos uma crítica
doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não
há temos... A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a
nossa literatura.
* O velho e bom Machado toca numa ferida aberta. Já
houve um período, nos meados do século 20, que cultivamos uma crítica atuante e
especializada. Por coincidência, uma das fases mais fecundas da nossa
literatura. Mas a crítica morreu e foi sendo substituída por um câncer
incurável, o marketing literário. Saíram os críticos, entraram os resenhistas,
que nada mais são do que leitores usados por autores e editores como massa de
divulgação, não existindo neles critérios ou formação que os qualifiquem.
A violenta difusão dos best-sellers internacionais, acompanhada da redução do livro a um objeto
comercial, fazem com que iniciantes e jovens autores se subordinem ao que
chamam de Mercado Editorial. A literatura brasileira está sendo colonizada
pelos golpes implacáveis de um modelo que dita os temas, a linguagem e as cores
que querem fazer predominar. Ao mercado não interessa a identidade, não existe
identidade, não buscam a literatura como obra de arte. Na verdade, nem se
empenham em formar leitores. O que interessa são as vendas, a necessidade do
lucro imediato.
Machado
de Assis – Em
que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto; peca
na intrepidez às vezes de expressão, na impropriedade das imagens, na
obscuridade do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvairia e
se perde, chegando à obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade
e a grandeza.
* O que impressiona é que Machado escreveu este
artigo em 1873 e se iniciarmos a leitura desconhecendo o nome do autor parecerá
que estamos acompanhando uma análise sobre a presente paisagem literária.
Novamente, constatamos que pouco evoluímos e estamos aceitando a colonização
cultural imposta por um suposto mercado. Alguns escritores contemporâneos estão
mais preocupados em ter suas obras traduzidas para o inglês do que receber o
abraço dos conterrâneos. Há uma inversão de valores impulsionada pela fome da
visibilidade, do sucesso e do dinheiro. Neste trem desgovernado é mais
importante ser lido do que ler.
No redemoinho capitalista, os autores neófitos
entregam-se à submissão, contratam consultores literários (alguns que vivem
fora do Brasil) para aprenderem a escrever e estruturar romances de consumo
descartável. Adotam uma linguagem pasteurizada, por ouvirem dizer que será mais
fácil atingir maior quantidade de leitores, desprezam a qualidade em nome do
alcance de um público mais vasto. O livro vai se transformando numa peça
decorativa.
Os badalados jovens autores, lançados por grandes grupos
editoriais, fazem questão de se rotularem como “jovens” (como se isso fosse
algum selo de genialidade precoce), entregam as capas de seus livros a
depoimentos e chancelas de escritores estrangeiros num patético esforço de
ostentar prestígio.
No nosso acervo teatral, também parco de bons
autores, tivemos na década de 80 um movimento cômico batizado de “Besteirol”.
Às vezes, parece que o Besteirol se espalhou tardiamente por todo o campo
literário nacional, fincando residência preferencial nos romances. No Besteirol
que se estabeleceu nos romances não há humor, somente o eco trágico de quem não
mais consegue expressar narrativas com a própria voz.
Machado
de Assis – Não
se leem os clássicos no Brasil... Não se leem, o que é um mal... Cada tempo tem
o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem,
desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, - não
me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os
modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.
Outra coisa que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe
afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e
depressa; tira-se disso a glória, e não posso negar que é caminho de
aplausos... Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias; para
uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais.
* Quem esteve na 23ª Bienal do Livro em São Paulo, em
2014, se deparou com o caos. Aquilo se parecia, muito mais com um camelódromo
sem lei ou talvez com uma Fashion Week
literária de deslumbrados, nunca com um encontro de escritores querendo
compartilhar seus trabalhos. Uma calamidade.
Para a Bienal deste ano, só haveria salvação se
Jesus a tivesse invadido e expulsado os vendilhões do templo.
Machado
de Assis – Aqui
termino esta notícia. Viva a imaginação, a delicadeza e força de sentimentos,
graça de estilo, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto,
carências às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre
copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da
atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro.
* Resta-nos rogar que Machado não tenha sido um mero
“bruxo” e que o tempo prove que ele também foi o “profeta” do Cosme Velho.
domingo, 22 de junho de 2014
A ARROGÂNCIA DO MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO
Retratando-me como escritor iniciante, busquei aproximação mais apurada sobre as práticas do mercado editorial no Brasil. Os primeiros contatos com as maiores corporações me revelaram um executivo de perfil arrogante e pouco acessível, é o desenho predominante do personagem que compõe o editor nacional. Soa anacrônico imaginarmos um profissional, que deveria preservar a mente aberta para identificar e promover talentos promissores, aprisionado num casulo de pedantismo que incuba um vulgar caçador de níqueis. Travar um breve diálogo com alguns desses editores significa ser apresentado a uma ironia gástrica que corrói qualquer conexão que poderia ser criada. Editores são ilhas de desprezo.
A produção de livros sofreu fortes acomodações tectônicas nos últimos dez anos, empresas como a Cia das Letras, Objetiva e Nova Fronteira ganharam sócios internacionais com forte participação acionária. Será que isso explicaria a atual supremacia dos títulos estrangeiros em nossas maiores livrarias?
De acordo com as declarações de um profissional que pertenceu aos quadros do grupo Saraiva, o brasileiro reclama de tudo e muitos dos nossos escritores estão fora das livrarias porque não vendem, se vendessem estariam lá. Ou seja, o editor se coloca acima da sua nacionalidade e resume o autor brasileiro como um chorão. Ele diz mais, afirma que no mercado globalizado o leitor não está interessado na pátria do escritor e é por isso que escolhe e tem o direito de ler Game of Thrones.
É indisfarçável o nosso choque ao constatar uma nova ordem disposta a colonizar a literatura em nome do lucro. Os executivos dos grandes grupos editoriais determinam o direito do que se deve ler, mas não contemplam aumentar as opções do que se pode ler. Qualificam o autor brasileiro como um rebelde fracassado, mas esquecem que os balcões de destaque das livrarias são vitrines de aluguel que expõem somente o que rotulam de comercial.
Prosseguindo a conversa, perguntei como eu deveria proceder para tentar publicar um livro de contos, a resposta foi seca: contos só publicam se for amigo do rei ou por tráfico de influência, livros de contos não vendem. Na verdade, os autores que vendem parecem ser somente aqueles que sentam na cadeira do Jô Soares, encaminhados por grandes agências literárias, que sempre me passaram a impressão de serem as únicas capazes de disfarçar chumbo em ouro.
Interessante que uma das nossas mais parrudas agências do meio carregue um pomposo nome em inglês, a Villas-Boas & Moss – Literary Agency and Consultancy. No site da VBM, um recado: “prioridade para manuscritos com referência ou recomendação”. O pistolão chegou à província dos livros.
- Literatura de qualidade é um nicho menor, é para a elite e a elite sempre foi minoria – revela o meu interlocutor do mercado editorial.
A fala nos faz concluir que ao leitor comum oferecem o farelo dos porcos. Não resta a menor dúvida, vivemos um tempo em que a educação avança, mas a filosofia medieval dos editores continua subestimando e evitando formar melhores leitores. Querem o sucesso imediato, o best-seller, e o sucesso instantâneo prescinde a qualidade.
Pergunto ao meu entrevistado se não é ruim para todos que a literatura se torne um território de mercenários. Antecipando o fim da conversa, o pavão abre a cauda e me dispensa com uma saudação exemplar.
- Caro amigo, essa sua aflição é de muitos, o que eu digo para as pessoas é, escreva por prazer, pra si mesmo... Agora, me desculpe, estou meio ocupado... escrevendo.
No dia em que os bons autores escreverem para as gavetas, talvez as editoras percebam que exilaram os seus mais valiosos operários.
Neste cenário apocalíptico, onde editores pensam como corretores imobiliários, a melhor esperança são as chamadas editoras de fundo de quintal, que seguem em investidas heroicas, se destacando nos relevantes prêmios literários mundo afora, provando que há um anseio em restaurar a literatura como obra de arte.
A produção de livros sofreu fortes acomodações tectônicas nos últimos dez anos, empresas como a Cia das Letras, Objetiva e Nova Fronteira ganharam sócios internacionais com forte participação acionária. Será que isso explicaria a atual supremacia dos títulos estrangeiros em nossas maiores livrarias?
De acordo com as declarações de um profissional que pertenceu aos quadros do grupo Saraiva, o brasileiro reclama de tudo e muitos dos nossos escritores estão fora das livrarias porque não vendem, se vendessem estariam lá. Ou seja, o editor se coloca acima da sua nacionalidade e resume o autor brasileiro como um chorão. Ele diz mais, afirma que no mercado globalizado o leitor não está interessado na pátria do escritor e é por isso que escolhe e tem o direito de ler Game of Thrones.
É indisfarçável o nosso choque ao constatar uma nova ordem disposta a colonizar a literatura em nome do lucro. Os executivos dos grandes grupos editoriais determinam o direito do que se deve ler, mas não contemplam aumentar as opções do que se pode ler. Qualificam o autor brasileiro como um rebelde fracassado, mas esquecem que os balcões de destaque das livrarias são vitrines de aluguel que expõem somente o que rotulam de comercial.
Prosseguindo a conversa, perguntei como eu deveria proceder para tentar publicar um livro de contos, a resposta foi seca: contos só publicam se for amigo do rei ou por tráfico de influência, livros de contos não vendem. Na verdade, os autores que vendem parecem ser somente aqueles que sentam na cadeira do Jô Soares, encaminhados por grandes agências literárias, que sempre me passaram a impressão de serem as únicas capazes de disfarçar chumbo em ouro.
Interessante que uma das nossas mais parrudas agências do meio carregue um pomposo nome em inglês, a Villas-Boas & Moss – Literary Agency and Consultancy. No site da VBM, um recado: “prioridade para manuscritos com referência ou recomendação”. O pistolão chegou à província dos livros.
- Literatura de qualidade é um nicho menor, é para a elite e a elite sempre foi minoria – revela o meu interlocutor do mercado editorial.
A fala nos faz concluir que ao leitor comum oferecem o farelo dos porcos. Não resta a menor dúvida, vivemos um tempo em que a educação avança, mas a filosofia medieval dos editores continua subestimando e evitando formar melhores leitores. Querem o sucesso imediato, o best-seller, e o sucesso instantâneo prescinde a qualidade.
Pergunto ao meu entrevistado se não é ruim para todos que a literatura se torne um território de mercenários. Antecipando o fim da conversa, o pavão abre a cauda e me dispensa com uma saudação exemplar.
- Caro amigo, essa sua aflição é de muitos, o que eu digo para as pessoas é, escreva por prazer, pra si mesmo... Agora, me desculpe, estou meio ocupado... escrevendo.
No dia em que os bons autores escreverem para as gavetas, talvez as editoras percebam que exilaram os seus mais valiosos operários.
Neste cenário apocalíptico, onde editores pensam como corretores imobiliários, a melhor esperança são as chamadas editoras de fundo de quintal, que seguem em investidas heroicas, se destacando nos relevantes prêmios literários mundo afora, provando que há um anseio em restaurar a literatura como obra de arte.
sexta-feira, 6 de junho de 2014
A NOVA LITERATURA COMO FEUDO DE CELEBRIDADES
A NOVA LITERATURA COMO FEUDO DE CELEBRIDADES
Por Alexandre Coslei
A literatura, tal qual a lendária cidade de Troia, foi um dos últimos bastiães que cedeu ao avanço das barbáries da globalização. Resistiu com bravura à vilipendiação dos valores e à corrupção da alma. No entanto, resistir é inútil, já pressagiavam os Borgs de Star Trek. A arte literária também está sendo assimilada pelo consumismo hedonista para se enquadrar às normas da indústria cultural do século XXI, que é avessa a mergulhos profundos e impõe que as nossas preferências se limitem à epiderme das coisas.
Livros com capas coloridas, chamativas; autor com pose de pop star, patinando deslumbrado sob holofotes e flashes de câmaras digitais. A palavra que renuncia ao conteúdo para se transformar em imagem plástica, mais palpável, palatável e lucrativa. A palavra realocada num mundo onde prevalece o objeto comercial. Book trailers, palcos, escritores-celebridade, feiras literárias como grandes anfiteatros para uma gente bonita mostrar seu valor. É a literatura intimada a ser espetáculo.
O escritor recluso e tímido, que escolheu a solidão para fecundar o pensamento e a visão intimista sobre o mundo, esse está em desuso, perde lugar para o showman e para as faces conhecidas da TV (que também decidiram se enveredar pelas letras). Há poucos dias ouvi uma definição bem humorada sobre isso, estamos na era dos globe-trotters literários. Não, definitivamente não existe lugar ao sol para o misantropo. Ou ele se metamorfoseia em pavão ou que apodreça nos porões do anonimato.
O que se ganha com a literatura midiática? Sem dúvida, arrebanham-se mais leitores, fortalecem-se alguns grupos editoriais, aumentam as tiragens. E o que se perde? A qualidade endógena das obras entrou em decadência, a estética foi depreciada pelo objetivo de atingir leitores menos qualificados e leitores desqualificados geram escritores medíocres. O resultado que se observa é um vácuo na literatura brasileira que inunda as livrarias com títulos estrangeiros, traduções capengas e o cultivo de um gosto duvidoso. Estamos recolonizando a nossa literatura, esse é o preço do estrelato individual. Não é à toa que uma pesquisa recente, realizada em 2014 pelo Jornal O Globo nas principais bibliotecas públicas cariocas, constatou que o interesse dos leitores pelos best-sellers internacionais supera com larga vantagem a consulta por autores nacionais, inclusive, os clássicos.
Algumas poucas trincheiras tentam preservar a literatura como arte, editoras como a Patuá e Confraria do Vento semearam e colheram autores valorosos que emplacaram como finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2014.
Infelizmente, o caráter desta literatura nacional recolonizada, feudo de celebridades, movida por nichos e modismos, não aparenta vontade de reverter seus passos em direção ao lucro e nem exibe remorso pela depredação estética que promove. Quando tentamos prever um cenário futuro, o panorama que se esboça é nebuloso, imprevisível. Quem sabe, lá na frente, nos deparemos somente com as ruínas de um território devastado e saqueado pela sanha dos ególatras. Uma Troia incendiada. Porém, mesmo diante do trágico desfecho da Ilíada, Aquiles e Heitor, os dois heróis épicos, ainda inspiram o que é eterno. Aos que amam literatura, resta a fé. Acreditar é sobreviver.
Por Alexandre Coslei
A literatura, tal qual a lendária cidade de Troia, foi um dos últimos bastiães que cedeu ao avanço das barbáries da globalização. Resistiu com bravura à vilipendiação dos valores e à corrupção da alma. No entanto, resistir é inútil, já pressagiavam os Borgs de Star Trek. A arte literária também está sendo assimilada pelo consumismo hedonista para se enquadrar às normas da indústria cultural do século XXI, que é avessa a mergulhos profundos e impõe que as nossas preferências se limitem à epiderme das coisas.
Livros com capas coloridas, chamativas; autor com pose de pop star, patinando deslumbrado sob holofotes e flashes de câmaras digitais. A palavra que renuncia ao conteúdo para se transformar em imagem plástica, mais palpável, palatável e lucrativa. A palavra realocada num mundo onde prevalece o objeto comercial. Book trailers, palcos, escritores-celebridade, feiras literárias como grandes anfiteatros para uma gente bonita mostrar seu valor. É a literatura intimada a ser espetáculo.
O escritor recluso e tímido, que escolheu a solidão para fecundar o pensamento e a visão intimista sobre o mundo, esse está em desuso, perde lugar para o showman e para as faces conhecidas da TV (que também decidiram se enveredar pelas letras). Há poucos dias ouvi uma definição bem humorada sobre isso, estamos na era dos globe-trotters literários. Não, definitivamente não existe lugar ao sol para o misantropo. Ou ele se metamorfoseia em pavão ou que apodreça nos porões do anonimato.
O que se ganha com a literatura midiática? Sem dúvida, arrebanham-se mais leitores, fortalecem-se alguns grupos editoriais, aumentam as tiragens. E o que se perde? A qualidade endógena das obras entrou em decadência, a estética foi depreciada pelo objetivo de atingir leitores menos qualificados e leitores desqualificados geram escritores medíocres. O resultado que se observa é um vácuo na literatura brasileira que inunda as livrarias com títulos estrangeiros, traduções capengas e o cultivo de um gosto duvidoso. Estamos recolonizando a nossa literatura, esse é o preço do estrelato individual. Não é à toa que uma pesquisa recente, realizada em 2014 pelo Jornal O Globo nas principais bibliotecas públicas cariocas, constatou que o interesse dos leitores pelos best-sellers internacionais supera com larga vantagem a consulta por autores nacionais, inclusive, os clássicos.
Algumas poucas trincheiras tentam preservar a literatura como arte, editoras como a Patuá e Confraria do Vento semearam e colheram autores valorosos que emplacaram como finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2014.
Infelizmente, o caráter desta literatura nacional recolonizada, feudo de celebridades, movida por nichos e modismos, não aparenta vontade de reverter seus passos em direção ao lucro e nem exibe remorso pela depredação estética que promove. Quando tentamos prever um cenário futuro, o panorama que se esboça é nebuloso, imprevisível. Quem sabe, lá na frente, nos deparemos somente com as ruínas de um território devastado e saqueado pela sanha dos ególatras. Uma Troia incendiada. Porém, mesmo diante do trágico desfecho da Ilíada, Aquiles e Heitor, os dois heróis épicos, ainda inspiram o que é eterno. Aos que amam literatura, resta a fé. Acreditar é sobreviver.
sábado, 31 de maio de 2014
A CRÍTICA PROSTITUÍDA
“O
crítico literário é um homem que sabe ler e que ensina os outros a ler. ”
-Charles Augustin
Saint-Beuve-
Um
crítico apurado, talvez, não considerasse de bom tom iniciar o artigo com uma
citação que beira o clichê. No entanto, em nosso caos cultural, mergulhados na
profusão de títulos que são lançados diariamente às livrarias, nem assustaria
vermos alguns livros com o carimbo “made
in china”. Sim, a Internet e o Word produzem escritores em escala industrial e quase sempre sem
controle de qualidade. Junto com o fenômeno da multiplicação dos livros,
surgiram os messias e as oficinas literárias que prometem formar os novos best-sellers do século. A literatura se
tornou um mercado pagão.
Ao
olharmos para trás, lembrando de um período não tão remoto, encontramos nomes
como Carpeaux, Augusto Meyer, Álvaro Lins, Antônio Cândido, Silviano Santiago.
Personagens que atravessaram o século XX avaliando obras e proporcionando,
através dos jornais, as críticas de rodapé, eram elas que despertavam o crivo
dos leitores. A maioria desses críticos começaram a escrever numa época em que
não havia especialização em Letras e Literaturas, elaboravam análises
facilmente compreendidas pelo brasileiro médio, os conduzindo ao encontro dos
melhores autores e elegendo os clássicos que até hoje enaltecem as bibliotecas.
O que houve com a crítica literária? José Castelo, jornalista da Gazeta do
Povo, afirma que ela não mais existe.
Atribuem
o ocaso da crítica à implantação da Teoria da Literatura dentro das
universidades. As análises, antes acessíveis, ganharam ares incompreensíveis,
pernósticos, rodeadas de códigos ininteligíveis ao leitor comum. Enquanto os
primeiros críticos brasileiros do século XX avaliavam e avalizavam um livro, os
rebentos da Teoria Literária dissecavam cientificamente um texto. A ótica
universitária trouxe o peso do enfado.
Como
nada se perde e tudo se transforma, a necessidade do lucro fez nascer no
mercado editorial duas deturpações pejorativas: O Publisher e o Resenhista.
O Publisher veio tomar o lugar do nobre
ofício de Editor. Agora, os livros são publicados visando o seu potencial de
vendas, a capacidade do autor agregar leitores, a busca de nichos comerciais
imbuídos de caráter pecuniário.
O
Resenhista é a versão empobrecida do saudoso crítico literário, é a crítica
prostituída. Longe de ser um teórico, ele se coloca como leitor profissional. A
resenha não se obriga ao compromisso com a linguagem, nem a conceitos ou
tradição. É uma redação sobre um livro e se presta, geralmente, a promover o
salto das vendas. Não é incomum percebermos a relação incestuosa entre
resenhistas, autores e editoras. Se quiséssemos alçar a resenha ao patamar de
crítica, nós a chamaríamos de crítica de patota. Qualquer garoto de 15 anos
elabora uma resenha, não é preciso muito, além de ler o livro e desenvolver
elogios ou apontar erros. Tudo irá depender da intenção, nunca de um
compromisso estético.
Após a
revolução da informática, nunca tivemos tanto a necessidade do crítico
literário que nos traga novamente a avaliação que avaliza aquilo que se deve
ler, que devolva ao livro o status de obra de arte e retire dele o rótulo de
produto. Do jeito que estamos, o universo literário representa uma Gotham City onde o Batman é um herói falecido.
quarta-feira, 21 de maio de 2014
VERDADES DO COTIDIANO
DA SÉRIE: VERDADES DO COTIDIANO.
Juro, às vezes, tento fortalecer minha fé no atendimento do funcionário público, mas logo surge um desses verdugos de cartório, que somente com uma caneta consegue impingir as mais dolorosas torturas contra... os desprotegidos contribuintes, e minha crença desaba em céticas ruínas.
Quarta-feira. Compareço ao posto da Inspetoria da Receita Estadual para dar entrada num processo de reconhecimento de isenção de ICMS, o vigilante me aponta o guichê e vou de encontro ao meu destino. Não havia ninguém para me atender, mas uma senhora “quebra-galho” apareceu do nada e me perguntou o que eu desejava. Expliquei a minha demanda e ela me informou sobre a lista de documentos que eu deveria trazer. Ok, voltarei no dia seguinte.
Quinta-feira. Retorno pela segunda vez ao posto da Receita Estadual na Tijuca, caminho até o guichê, encontro um funcionário com pastas abertas e digitando compenetrado.
- É aqui que dou entrada no pedido de isenção de ICMS? – Pergunto.
O funcionário me lança um olhar hostil por cima dos óculos (que logo se transformaria numa expressão de desprezo mesclada com repulsa) e me responde:
- Estou ocupado e tem um senhor na sua frente. Vai ter que aguardar.
O tom foi tão ríspido que só não reagi por que o atendente me lembrou um simpático personagem de desenho animado, o Urso do cabelo duro. Além disso, pressenti que qualquer reclamação poderia ser retaliada com a obrigação de um calvário burocrático que eu preferi evitar. Respondi que aguardaria e me sentei.
Uma hora depois, ele me acena com a mão, era a permissão para que eu me aproximasse. Expliquei o meu caso e estendi a documentação solicitada pela primeira atendente. O Urso do cartório me informa que faltavam documentos, digo que trouxe os documentos que me informaram como necessários no dia anterior, ele pergunta quem me deu a relação e eu deduro a atendente da véspera. O Urso chama pela atendente, mas ela não o atende. Tudo inútil. Ele me passa uma lista complementar a primeira. Novamente, saio frustrado.
Sexta-feira. Terceiro dia, volto ao posto da Receita Estadual. Aproximo-me do guichê e, numa tentativa de transmitir simpatia, pergunto o nome do atendente, o mesmo que me deu a nova lista de documentos.
- Opa, lembrado de mim? Estive ontem aqui. Esqueci foi teu nome? – Introduzo a conversa.
Ele me olha por sobre os óculos sem nenhuma expressão que eu pudesse identificar e responde num murmúrio.
- Anham... Meu nome é Paulo. Vai ter que aguardar.
Sento e espero resignado. Quarenta minutos depois, ele me acena com a mão e corro ao seu encontro como um cão adestrado. Se eu tivesse rabo, não tenho dúvidas que o abanaria. Entrego os documentos. Ele vai ticando tudo com a caneta desconfiada e, ao final, me transmite a trágica notícia.
- Está faltando a xerox da identidade de um dos requerentes.
Senti uma vertigem, um gosto amargo na boca. Contive meus tremores e confirmei que havia trazido a documentação que ele me relacionou. Paulo me volta o olhar gélido que só os que comungam com uma mesa revestida em fórmica sabem transmitir. De repente, quando seus olhos cruzaram com os meus, ele pareceu ter sido tocado por alguma brisa de piedade.
- Bem, como você já veio aqui algumas vezes, vou fazer vista grossa - era a minha anistia.
Ele carimba a papelada e me libera afirmando que não poderia dar prazo para a aprovação, pois o sistema estava com problemas. Nada mais importava, saio feliz daquela cova como um torturado que sobrevive ao seu algoz. Um entusiasmo irrefreável me faz ter vontade de cantar "I'm singing in the rain" e caminho lépido como um degenerado que foi perdoado pelos pecados cometidos. No entanto, um pequeno laivo de vingança quer escapar da minha boca e eu deixo que escorra: vai se foder, Paulo.
sábado, 17 de maio de 2014
BARBA ENSOPADA DE SANGUE - RESENHA DA SÉRIE: DESCONSTRUINDO A CRÍTICA DE ALUGUEL
SÉRIE: DESCONSTRUINDO A CRÍTICA DE ALUGUEL
LIVRO: BARBA ENSOPADA DE SANGUE
AUROR: DANIEL GALERA
EDITORA: CIA DAS LETRAS / 2012
Visitar a Livraria Saraiva, seja onde for, é como entrar numa Blockbuster literária. São livros de autores celebridades como Pedro Bial, Lobão, Fernanda Torres, etc. Além deles, encontramos uma fartura de biografias e edições sobre dragões, ficções com ares medievais, h...istória de vampiros, narrativas de psicopatas caricatos, livros de amor e toda a quinquilharia produzida para um “novo público”. Os melhores livros da Saraiva não ficam nos balcões de destaque, mas empilhados no chão como indigentes das letras.
Obrigo-me a superar qualquer preconceito intelectual que ainda habite o meu universo e compro o título de um desses decantados jovens autores, alardeados como finalistas e vencedores dos mais significativos prêmios literários (nem sempre um marketing sincero, é preciso filtrar). Saio da Saraiva carregando “Barba ensopada de Sangue”, o romance do enaltecido Daniel Galera.
Um protagonista sem nome, cujo estopim da história nasce no suicídio anunciado do pai. Ao mesmo tempo que informa a decisão de se matar, o pai faz o filho prometer que sacrificará a cadela de estimação assim que ele consumar seu intento. O filho promete, mas não cumpre. Ao contrário, adota a cadela e parte com ela para Garopaba com o objetivo de desvendar o mistério ancestral que envolve o assassinato do avô naquele litoral catarinense. Um elemento interessante acompanha o protagonista, ele sofre de uma doença que o faz esquecer o rosto das pessoas e impede que as reconheça mesmo depois de manter contato.
Somados os ingredientes, talvez pudesse se descortinar uma bela trama. Infelizmente, não é o que acontece. Escrito em terceira pessoa, entremeado por diálogos abundantes, o livro não chega a lugar nenhum e parece se perder até do eixo principal, buscando um recurso bobo e pouco criativo para a conclusão do enredo. Durante o decorrer do calhamaço de 422 páginas, somos conduzidos pela rotina vazia do principal personagem, confirmamos o complexo de corno causado por ter perdido uma namorada para o irmão, testemunhamos a readaptação da cadela ao novo dono e passeamos pelas praias invernais de Garopaba através de descrições intermináveis. Um detalhe intrigante nesta nova geração artificial de jovens autores é que a confecção do romance para eles aparenta ser mais um ato de descrever do que o de contar.
Ao término da leitura de “Barba ensopada de Sangue” fica a nítida impressão de que não lemos um romance, mas corremos os olhos por um folder turístico.
A POPULARIZAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS E A VULGARIZAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA
** A popularização de Machado de Assis e a vulgarização da literatura brasileira contemporânea **
Por esses dias discutiu-se tanto a popularização dos
textos de Machado de Assis que quase alcançamos um tom clichê. A ideia de
reimprimir a obra de Machado objetivando a imposição de um vocabulário
simplório, que esteja ao alcance do público menos letrado, é somente um reflexo
de uma literatura contemporânea açoitada pelas mãos de editoras que escolheram
transformar a arte em cifras lucrativas. Recentemente, a escritora Nélida Piñon
afirmou que hoje publicam o que vende, e não mais a literatura que fica. Está
corretíssima. E qual a literatura que demonstra capacidade de mercadoria no
Brasil? São os livros sobre vampiros brasileiros, ficções medievais encarnadas
por anjos e demônios, violência sádica e caricata e romances sobre nada que
correm centenas de páginas descrevendo litorais e personagens sem sal.
O que surpreende é a complacência cúmplice de muitos
críticos com a subliteratura e raiva revanchista contra quem imagina poder
atualizar um clássico literário. O Word, a Internet e o analfabetismo funcional
do Brasil abriram espaço para pretensos escritores que produzem em ritmo
industrial, mas pouco se importam com estética, pois estão voltados para os
quinze minutos de fama e buscam o eldorado que os tornem best-sellers. Às
vezes, contam com competentes empresários que abrem as portas da mídia e
transformam o que é oco em celebridade, pois no mercado atual é a celebridade
que vende. Tal realidade nos remete ao arquétipo explicitado no filme Muito
além do Jardim, onde até um suspiro do acéfalo personagem Chance (Peter
Sellers) era interpretado como genial.
Por que hostilizar a tradução populista de Machado e
ignorar os nichos literários criados compostos de livros caricatos lançados
para conquistar jovens e limitados leitores? Essa é uma discussão que poderia
ganhar amplitude inteligente e está se resumindo a um debate provinciano.
Clássicos sem herdeiros
Toda literatura é válida, mas as que devem ganhar
visibilidade são aquelas que os editores compreendem como comerciais. É assim
que se configura o presente mercado editorial brasileiro. O autor a ser
valorizado é o que se comporta como um bom gerente de contas e cumpre boas
metas de venda com o seu produto. É este o autor que as editoras inserem na
mídia, para eles negociam a condescendência de uma parte da crítica e a partir
deles criam a farsa do merchandising.
Numa nação de leitores toscos, Machado de Assis
precisa ser reescrito para vender e os autores de sucesso desfilam a face mais
pueril e vulgar da literatura em programas de entrevistas e nos cadernos
culturais dos nossos periódicos. Talvez, tenha sido por isso que o nosso
Machado elaborou aquela sentença magnífica de Brás Cubas, um ato profético:
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o
legado da nossa miséria.”
Assim, nossos clássicos vão ficando sem herdeiros e,
pelo visto, se transformando em hieróglifos a serem decifrados.
quarta-feira, 23 de abril de 2014
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