segunda-feira, 3 de novembro de 2014

VAN GOGH E RIMBAUD: OS OLHOS DO INFINITO

Arthur Rimbaud faz parte daquela galeria legendária de artistas que agregou ao brilho da sua obra o aspecto mítico do subversivo. De poeta marginal ao errante em terras africanas. O vate de inquietantes olhos azuis que arruinou a reputação de Verlaine ou que apenas serviu como detonador da autodestruição do mestre decadente. Talvez, para Rimbaud, a poesia tivesse tomado ares de um caminho bolorento e apático.  O enfant terrible convertido ao catolicismo no leito de morte.

Van Gogh encontrou no suicídio o passaporte que rompeu com a servidão imposta pela arte para preservar sua saúde mental, Rimbaud renunciou ao poeta para mergulhar na aventura do desconhecido e nas empreitadas comerciais pelos desertos da Somália e Etiópia. Dois gumes da mesma faca, o talento se revelando como a vocação do trágico.

O holandês Van Gogh e o francês Rimbaud, duas linhas soltas que atraem o nosso mórbido fascínio. Um abraçou a pintura com o extremo da paixão, erguendo uma ponte frágil entre a loucura e a sanidade. O outro rejeitou a própria poesia com o mesmo asco com que repudiou Verlaine, um obstáculo entre ele e a sua sina de se sentir vivo. Não surpreende que os dois ícones tenham sido contemporâneos e morrido, ambos, aos 37 anos.

Um pintor e um poeta, ambos batizados pelo vício do absinto, ébrios da desolação em busca de consolo. Van Gogh fazia da arte a alienação para a sua alma compulsiva, um emplastro para a loucura sempre à espreita. Rimbaud renegou a arte para afirmar sua vontade de viver e até enriquecer, seguindo as correntes vertiginosas da adrenalina.

“A vida está em outro lugar” – escreve o jovem Rimbaud em seu diário, antes de deixar a casa da mãe.

“Dizem que na pintura não se deve procurar por nada, nem nada esperar, além de um bom quadro... Talvez seja verdade, e por que recusar-se a aceitar o possível, sobretudo se assim fazendo enganamos a doença?” – Assim, Van Gogh divaga em uma das cartas ao irmão Theo.

A linha tênue e comum entre os dois é a angústia do inconformismo, um desejo urgente de identificar o sentido de existir. Rimbaud e Van Gogh são personagens que refletem as duas faces cruciais da nossa humanidade: o poeta quer agarrar a loucura para se sentir vivo, o pintor quer escapar dela para continuar vivo.

Pelas cores ou pelas palavras, vagando por desertos selvagens ou por quartos de hospícios, rejeitando ou idolatrando qualquer manifestação estética, a poesia persiste nos dois e é a poesia que constrói neles o folclore e a tragédia que os perpetuaram.

Van Gogh soma inusitado valor aos seus quadros pelos relatos fartos e deslumbrantes que nos legou através das correspondências com seu irmão Theo. Já Rimbaud nos seduz pela imensa lacuna que marca a sua vida após abandonar a poesia e se tornar um aventureiro numa jornada de poucos registros e muitas especulações. Van Gogh disseca-se, Rimbaud ausenta-se.

Qualquer biografia que cite esses dois artistas irá salientar uma interseção evidenciada na instabilidade do comportamento e na conturbada incapacidade de convivência social. Muitas vezes na história se constatou a mais intrigante faceta da genialidade, aquela que transporta uma caótica desordem emocional para uma obra de perturbadora harmonia. É nessa categoria de gênios que estão incluídos Vincent Van Gogh e Arthur Rimbaud.

A perenidade das imagens que eles usam para decifrar o mundo é uma fonte interminável de encantos.

Rimbaud escreveu: “Ela foi encontrada / Quem? A eternidade / É o mar misturado ao sol / Minha alma imortal, / cumpre tua jura / Seja o sol estival / Ou a noite pura. / Pois tu me liberas / Das humanas quimeras, / Dos anseios vãos! / Tua voas então... / - Jamais a esperança. / Sem movimento. / Ciência ou paciência, / O suplício é lento / Que venha a manhã, / Com as brasas de Satã, / O dever é vosso ardor / Ela foi encontrada! / Quem? A eternidade. / É o mar misturado ao sol.

Desta forma, Van Gogh descreve um dos seus quadros para Theo: “Ufa – o ceifeiro está pronto, acho que é dos que você porá em sua casa – é uma imagem da morte tal como nos fala o grande livro da natureza – mas o que eu procurei foi aquele “quase sorrindo”. É todo amarelo, exceto uma linha de colinas violetas, um amarelo pálido e loiro. Acho engraçado que eu tenha visto assim através das grades de ferro de uma casa de loucos.”

Definitivamente, num universo que se nutre da obviedade das coisas, o que transforma homens em lendas são os olhos do infinito.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A FALÊNCIA DO ROMANCE BRASILEIRO





A era digital inseminou uma crise na literatura brasileira: o colapso da criatividade.

Observando o cenário nacional e focando nos jovens escritores, o que vemos é um painel que nos remete ao século 19, quando os importados da língua francesa e inglesa trouxeram as primeiras sementes de fertilidade para os autores brasileiros. O que testemunhamos hoje são aqueles mesmos romances adocicados, moralizantes (alguns, com viés evangélica), a exacerbação do sentimentalismo, o didatismo e a fantasia gótica. Os que fogem das velhas receitas enveredam por temas subversivos que flutuam no superficial, se limitando a meras apologias devido a uma abordagem precária, nessa categoria se encaixam os romances que versam sobre violência gratuita e decadência da sociedade. Há outros dois modelos em voga, um existencialismo maçante e um erotismo tacanho que tem muito a aprender com o Marquês de Sade.  O romance, como gênero literário, involuiu. Há uma tendência retrógrada que se enraizou, apesar do irresistível convite que nos oferece este admirável mundo novo.

No Brasil, a incapacidade autoral para espelhar de maneira autêntica e profunda os novos tempos evoca como causas o esfacelamento do sistema educacional, a mutilação da cultura e a submissão das editoras à colonização intelectual imposta pelo estrangeiro. O número de consumidores de livros cresceu desde a consolidação do romance no país, mas a qualidade dos escritores e leitores sofreu uma implacável erosão. A crescente comercialização de livros, paradoxalmente, não incide no aumento da quantidade de leitores, fato comprovador da tese que afirma que livros se tornaram objetos de colecionador, firulas decorativas. Livros deixaram de ser formadores da consciência crítica.

É preocupante quando constatamos que uma das peças mais pulsantes e revolucionárias da nossa literatura continua sendo “Memórias póstumas de Brás Cubas”, escrito em 1881. Sob o pretexto do lucro, instalou-se a lógica mercantilista dos nichos literários que movimentam as vendas e impõe rédeas curtas à criação.

A leitura e a escrita exigem a imersão absoluta dos seus apóstolos, atitude que afronta o imediatismo ruidoso e consumista dos dias correntes. O século 21 escolheu a velocidade, a dinâmica, as mudanças e a constante evolução. Na contramão, a literatura quer fabricar calhamaços, cultivar a estagnação, teima em ser arcaica. Como essa arte que venera o anacrônico pode sobreviver entre indivíduos que amanhecem ansiando pisar no futuro? Passado é vocábulo morto e o presente é peça de museu num universo onde se vive no amanhã.


A supremacia fotográfica da TV e do cinema fizeram a indústria dos roteiros prosperar. Séries americanas são cultuadas por estarem em sintonia com as expectativas do homem coletivo gerado pela Internet. Já os romances, excetuando-se os best-sellers, ganham mais visibilidade quando são adaptados para o cinema ou TV, justamente pelo processo em que são lapidados, num modelo de narrativa ágil e objetiva.

Não é à toa que o conto recuperou o fôlego como gênero literário. Forma breve que transmite histórias, imagens e pensamentos numa configuração que consegue acompanhar as necessidades da prosa moderna. No hiato do ciberespaço a poesia também se reergue com sua índole intrépida, navegando por mares inexplorados.

Editoras que atuam em nosso solo, antes importadoras de títulos estrangeiros, mantêm diretrizes caducas quando condicionam recrutar apenas escritores brasileiros que estejam dispostos a produzir os velhos romances sobre mocinhas. É curioso que novos conceitos se vendam como razão social para a ressurreição de exercícios estéticos bolorentos. Definitivamente, o romance brasileiro não somente estagnou, ele retrocedeu ao abdicar das virtudes retóricas daqueles que fundaram as suas bases estilísticas.

Na verdade, é possível que o século 19 fosse até mais avançado na motivação à criatividade. Gabinetes de leitura, bibliotecas, livrarias e uma fartura de jornais difundiam e propagavam obras literárias. Saraus preservavam o hábito da leitura em voz alta e faziam proliferar os círculos de ouvintes que, no final das contas, engrossavam o conjunto de leitores.

Na Internet, as redes sociais e os sites se valem, prioritariamente, da palavra escrita. É do senso comum que a revolução tecnológica valorizou e disseminou o ato de escrever como nunca se teve notícia. No entanto, esse destaque não se expressou em níveis qualitativos, pelo contrário, o texto foi pasteurizado.

Por algum motivo, emerge uma intrigante sensação no espírito humano, relegamos ao esquecimento a nossa mortalidade. Com isso, anulou-se a urgência de registrarmos o que nos rodeia e as impressões que marcam as nossas vidas. Somos X-Mens, Vingadores, Super-Homens, seres mutantes em que se alastra a virulência da alienação. 

Atribuem a Cervantes o título de precursor do romance moderno e em Dom Quixote de La Mancha consta um episódio de forte simbolismo na interpretação que Otto Maria Carpeaux expôs no artigo “Cervantes e o leão”. Dom Quixote, com lança em punho, ao cruzar com uma carroça que transportava bravos leões engaiolados, desafiou o carroceiro para que abrisse uma das jaulas. Receoso, o sujeito abriu a jaula e libertou o macho. O leão saiu, olhou em volta e retornou ao fundo da jaula, desprezando o atrevimento do cavaleiro da triste figura.  Carpeaux explica que aquele leão não é o símbolo da realidade triunfadora, é um bicho medroso e banal que prefere o conforto seguro do aconchego, mesmo que seja na jaula. Assim se comportam as editoras e os jovens autores que se submetem aos grilhões do mercado, desprezam a audácia em favor do bálsamo morno do óbvio e da vaidade. A vanguarda é para os ousados.

O filósofo húngaro Georg Lukács classificava o romance como uma epopeia burguesa e analisava com rigor o contraponto entre narrar e descrever. Para ele, a narrativa constrói o objetivo social do romance. Infelizmente, se considerarmos Lukács, somaremos outro ponto negativo para a literatura fabricada por nossos autores neófitos, sempre mais afeita às minúcias descritivas que compõem o quadro alienante.

Haverá os que acusarão este digno articulista de se empenhar numa crítica generalizada. O que se vê quando subimos ao alto de uma montanha? A paisagem que predomina ou os pequenos recantos camuflados? A regra obstrui as exceções. Importa ressaltar que o romance viveu diversos dilemas e a partir deles se renovou.


Que um Quixote se insurja entre a geração Blade Runner e traga à luz a obra que irá mapear o território cibernético do homem virtual. Que em um de nós, replicantes, haja o destemor capaz de romper o vácuo do status quo.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

A BIBLIOTECA DE VAN GOGH - LEITURAS ILUSTRES

Quando a Diretora Global de Educação do Banco Mundial (Bird), órgão ligado à Organização das Nações Unidas (ONU) curte um texto que você escreveu, a gente fica um pouco mais feliz.

Obrigado pela leitura Claudia Costin.





sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A BIBLIOTECA DE VAN GOGH




Inúmeras vezes, nas cartas ao irmão Theo, Vincent Van Gogh discorre sobre literatura com a argúcia de um crítico e a paixão de um leitor voraz.  A literatura é um tema tão recorrente para Van Gogh que nem nos surpreendemos quando ele confessa que poderia tê-la escolhido como meio de expressão, caso a pintura não houvesse se afirmado em sua vida.  

A bipolaridade emocional que o assolava afastou os amigos, incendiou o pavio das severas crises de depressão que sofreu, mas raramente o impediu que se dedicasse com afinco à criação dos seus quadros e à leitura intensa. Duas fortalezas resistiram até o fim na alma de Van Gogh, a pintura e os livros. 

Quem não pensa em Van Gogh também como um escritor certamente não leu suas cartas, um valioso acervo literário e histórico. E Vincent não se restringia a escrever, ele pensava sobre literatura. A rica correspondência com Emile Bernard, um pintor que se arriscava como poeta, demonstra sua lúcida habilidade em avaliar textos.  

Não foi à toa que o perfil mais visceral de Van Gogh foi desenhado por um escritor francês que nos deixou o manifesto intitulado “Van Gogh, o suicida da sociedade”, de Antonin Artaud: 

“Não, Van Gogh não era louco, mas suas pinturas eram bombas atômicas, cujo ângulo de visão, ao lado de todas as outras pinturas polêmicas da época, foi capaz de abalar gravemente o conformismo larvar da burguesia” ... 

Continua sobre Van Gogh: 

“E o que é um autêntico alienado? É um homem que preferiu torna-se louco, no sentido em que isso é socialmente entendido, a conspurcar uma certa ideia superior da honra humana.  Foi assim que a sociedade estrangulou em seus asilos todos aqueles dos quais ela quis se livrar ou se proteger por terem se recusado a se tornar cúmplices dela em algumas grandes safadezas. Porque o alienado é também o homem que a sociedade se negou a ouvir e quis impedi-lo de dizer insuportáveis verdades”.  

“Há em todo demente um gênio incompreendido em cuja mente brilha uma ideia assustadora e que só no delírio consegue encontrar uma saída para as coerções que a vida lhe preparou”. 

A pintura de Van Gogh está ligada, numa comunhão indissolúvel, à obra escrita que ele nos legou através das suas cartas. Uma complementa a outra. Daí sua fama e sua história precederem e predominarem sobre a arte que ele produziu.  

Protagonista de amores obsessivos, do famoso caso em que decepa a própria orelha para entregar a uma prostituta, dos acessos de fúria, dos mergulhos profundos na melancolia. Tudo em torno de Van Gogh o rotulava como louco, mas as suas maiores predileções literárias espelhavam um homem romântico e voltado para a razão. Era um pintor que valorizava a palavra, conforme revela ao amigo Emile Bernard em uma de suas cartas: 

“Há tanta gente, especialmente entre nossos camaradas, que imagina que as palavras não significam nada – pelo contrário, a verdade é que dizer uma coisa bem é tão interessante e difícil quanto pintá-la. Há a arte das linhas e das cores, mas também existe a arte das palavras, e esta permanecerá”. 

Destacava a importância que via na criatividade: 

“Um homem pode ter uma soberba orquestração de cores e não ter ideias”. 

A admiração incondicional de Van Gogh por Émile Zola demonstra o fascínio que o racionalismo científico lhe causava. Zola é citado incontáveis vezes em suas correspondências. 

“Chegando à França como um estrangeiro, eu, talvez melhor do que os franceses nascidos e criados aqui, senti o que havia em Delacroix e em Zola; e a minha admiração sincera e total por eles não conhece limites”. 

“Em sua qualidade de pintores de uma sociedade, de uma natureza tomada em sua plenitude, assim como Zola e Balzac, produzem raras emoções artísticas naqueles que os amam, justamente porque eles abrangem a totalidade da época que descrevem”. 

Vincent exprimia muitos elogios aos autores franceses, principalmente os do século 19, com exceção de Baudelaire, por quem nutria certa implicância por ter criticado pintores que ele idolatrava.  

“Vamos tomar Baudelaire por aquilo que ele realmente é: um poeta moderno, do mesmo modo que Musset, mas que ele deixe de se meter a falar de pintura”. 

Em uma das cartas comenta que estudou um dos livros de Víctor Hugo: “O último dia de um condenado”, um manifesto contra a pena de morte que suscitou enorme repercussão ao ser publicado. Há trechos em ele faz referências a Guy de Maupassant. Lia historiadores, como Jules Michelet, para conhecer a história da Revolução Francesa. Mas Van Gogh não deixava de praticar algum ecletismo literário quando fala das suas leituras de Shakespeare, Charles Dickens, Beecher Stowe, Ésquilo, da bíblia e dos evangelhos.  

“Meu Deus, como é belo Shakespeare. Quem é misterioso como ele? Suas palavras e sua maneira de fazer equivalem a um pincel fremente de febre e emoção. Mas é preciso aprender a ler, como é preciso aprender a ver e aprender a viver” (Van Gogh em Cartas a Theo) 

É de Van Gogh uma das mais belas sentenças que podemos encontrar sobre a nossa humanidade em qualquer literatura. 

“Eu também gostaria de saber aproximadamente o que é que eu sou. Talvez eu seja a larva de mim mesmo’. (Carta a Emile Bernard) 

Ao terminarmos de ler as cartas de Vincent, nos sucede um sonho encharcado de frenética juventude, mas um súbito cansaço nos envelhece. Colocamos de lado aquele velho chapéu de palha, rodeado de velas acesas, que usamos para romper a noite em que pintamos luzes febris na tela branca. Velas que se apagaram com o silêncio em luto dos corvos sobre os campos de trigo.


terça-feira, 9 de setembro de 2014

ESCREVER - A VOCAÇÃO PARA O AVESSO DAS COISAS


 
 
O escritor é o avesso - desde a adolescência foi como defini esse personagem mergulhado no vácuo, buscando na própria dissolução construir com as palavras um universo que sempre revela a alma daquele que escreve. Alguns escritores se apressam em dizer que não fazem da prosa ou da poesia um confessionário, quem diz isso é um mentiroso, porque todo escritor mente sobre suas reais intenções. Não há literatura sem algum tipo de confissão, que venha ela criptografada, envernizada ou camuflada. Talvez, escrever seja dizer a sua verdade fingindo que é a verdade do outro.   

O poeta é um fingidor” - sentenciava Fernando Pessoa. 

E foi com Pessoa que eu vivi a primeira epifania literária. Adolescente, de férias num sítio em Petrópolis, puxo à revelia um livro da biblioteca e me deparo com quatro versos que agiram em mim como a Pedra Filosofal. Transformaram meu infantil pensamento de jovem burguês numa avassaladora consciência crítica. A implosão de um mundo ilusório deu lugar às ruínas que formam a realidade.

Os Deuses vendem quando dão,

Compra-se a glória com desgraça,

Ai dos felizes, porque são

Só o que passa!

Versos clássicos que constam em “Mensagem”. Por anos a fio essa estrofe me assombrou, dela desabrochou uma incurável inquietação. Todo o sentido fugaz que a vida parecia ter na juventude desapareceu diante da desconstrução abissal que a poesia é capaz de causar. Fernando Pessoa me apresentou ao avesso e foi a primeira vez que sonhei a pretensão de ser escritor.

Escrever parecia simples, parecia fácil no início. Na primeira página em branco descobrimos que é preciso adestrar a emoção pela razão, que é crucial domar a palavra. Quando nascem as primeiras linhas, os primeiros parágrafos, o texto ganha o efeito de um espelho nos impondo o sentimento de uma obra incompleta, incapaz, simplória. É sincero quem diz que escrever é cultivar a dor. Mas por que escrevemos? Porque algum livro, num período qualquer, nos convenceu. Quem escreve vicia no isolar-se em si mesmo, habitua-se ao silencioso deslizar da caneta ou ao tique ritmado do teclado costurando nossos fragmentos para nos ampliar em narrativas, versos ou em outros fragmentos que almejam nos trazer sentido. Quem escreve escolhe existir no avesso das coisas que Drummond exaltou.

Acredito que todo escritor nasce de um Big Bang íntimo, sucessivas implosões que o capacitam a criar as maquetes impalpáveis que se erguem nos livros.

A minha segunda implosão viria quando conheci um escritor de fato: Víctor Giudice, pai de um querido amigo. Víctor era a antítese do que eu imaginava de um escritor. Carismático, divertido, um magistral contador de histórias. Éramos um grupo de amigos, todos muito jovens, e passávamos horas ouvindo entusiasmados os causos do Víctor. Meu primeiro contato com a sua obra foi a leitura de um conto chamado “O Arquivo”, uma fantástica jornada ao avesso de um homem.

Até conhecer o Víctor eu pensava em fazer Biologia, depois de conhece-lo fiz o vestibular para Letras. Ao ser aprovado, foi o Víctor que me levou para conhecer o campus da UFRJ. Este episódio me recordou um filme americano, repleto de clichês, intitulado no Brasil como “Encontrando Forrester”, Sean Connery fazia o papel de um escritor que tutelava um rapaz talentoso, mas em conflito com sua aptidão. Existem pessoas que podem fortalecer nossa opção por um caminho que hesitávamos seguir.

A terceira implosão veio com duas frases que iniciam a “Hora da Estrela”, de Clarice Lispector.

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”.

Foi quando disse sim e confrontei meu avesso. Que eu seja simplório, inacabado, incompleto, mas literatura remendaria meus retalhos, escrever anunciava a única redenção possível.

Escrever é estar no extremo de si mesmo – ensina João Cabral de Melo Neto.

Antes da Internet, dos Blogs e das Redes Sociais, a leitora mais dedicada de um aspirante a escritor eram as gavetas. Hoje temos o privilégio que muitos não alcançaram e podemos compartilhar, sem fronteiras, os textos que produzimos. Uma benção. Às vezes, uma tragédia.

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato, começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca?” (O Aleph – J.L.Borges)

Jorge Luiz Borges trouxe o meu desespero, na grandeza absoluta e inquestionável da sua narrativa. O Aleph me mostrava a distância entre escrever e ser escritor, o abismo entre o gênio e o medíocre. O Borges cego, que germinou numa biblioteca, me fez aceitar o inalcançável, mas também me convenci que o único patrimônio de uma vocação é a insistência.

Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista por um autor que quisesse – isto é, que pudesse – pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa.”  (A Filosofia da composição, de E.A.Poe)

No século 19, Poe reclamava do egoísmo didático dos autores eméritos. No século 21, escritores de talento questionável ganham dinheiro ensinando banalidades com seus métodos pasteurizados. Sim, o tempo muda os hábitos e precisamos saber se há benefício nisso. Recebo como afronta quando alguém afirma, com gesto largo e orgulhoso, que faz literatura comercial. Como? A língua é legado e a palavra é um patrimônio, jamais pode servir ao mercado ou à vaidade, a natureza da palavra é partilhar.

Alguém poderá me censurar quando eu disser que nunca me interessei em aprender a escrever dissecando formalmente as obras dos grandes mestres.

O que tem de bom na galinha assada é que ela não cacareja” – esclarecia Quintana em Poemas para a Infância.

A leitura eficiente não quer radiografar o método, quer saborear os temperos e assim decifrar a receita. Não tenho fé em nenhum bom escritor que negue ter brotado de leituras honestas e vastas. Os legítimos escritores foram persuadidos a escrever por algum livro que os arrebatou. Fiz Letras sem nunca me apegar a erudição cirúrgica da autópsia literária.

A primeira condição de quem escreve é não aborrecer” – me avisa, somente agora, Machado de Assis.

Pois termino aqui meus devaneios com a única máxima que me faz desejar aprender e ir adiante: escrever é seduzir.
 
 
 

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

FASHION WEEK LITERÁRIA


 
 
Em 1873, Machado de Assis escreveu um dos seus melhores artigos: “O instinto de nacionalidade”. O texto, ainda hoje atualíssimo em seu corpo de ideias, mostra o amadurecimento e a formação da identidade literária brasileira a partir das bases construídas por autores do século 19. Machado indica que é na essência nacional e no domínio do idioma que reside a independência da literatura de qualquer país.  A visão de Machado sobre o papel do escritor é de tamanha e paradoxal contemporaneidade que nos permite estabelecer um diálogo atemporal através de comentários. 

Machado de Assis - Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço, certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há de negar que semelhante preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro.                                                 

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabelecendo doutrinas absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. 

* Relendo as considerações de Machado, quase podemos acreditar que a nossa literatura ficou estagnada no estágio da adolescência, poucos passos lançamos à frente, breve foi o leque que se abriu. Não ultrapassaram um punhado de nomes os autores modernos que buscaram refletir nossas raízes e que se tornaram universais por serem genuinamente nacionais no uso da língua que decifra e espelha o ambiente e o seu tempo. A maioria dos jovens escritores brasileiros estão empenhados em copiar fórmulas importadas e modismos temporários. Raros são as mudas de criatividade que brotam em terra tão árida. Alguns autores conseguem reverberar a ausência de identidade em pretensos romances existenciais vagos e supérfluos.  

Machado de Assis – Estes e outros pontos cumpria à crítica estabelece-los, se tivéssemos uma crítica doutrinária, ampla, elevada, correspondente ao que ela é em outros países. Não há temos... A falta de uma crítica assim é um dos maiores males de que padece a nossa literatura. 

* O velho e bom Machado toca numa ferida aberta. Já houve um período, nos meados do século 20, que cultivamos uma crítica atuante e especializada. Por coincidência, uma das fases mais fecundas da nossa literatura. Mas a crítica morreu e foi sendo substituída por um câncer incurável, o marketing literário. Saíram os críticos, entraram os resenhistas, que nada mais são do que leitores usados por autores e editores como massa de divulgação, não existindo neles critérios ou formação que os qualifiquem. 

A violenta difusão dos best-sellers internacionais, acompanhada da redução do livro a um objeto comercial, fazem com que iniciantes e jovens autores se subordinem ao que chamam de Mercado Editorial. A literatura brasileira está sendo colonizada pelos golpes implacáveis de um modelo que dita os temas, a linguagem e as cores que querem fazer predominar. Ao mercado não interessa a identidade, não existe identidade, não buscam a literatura como obra de arte. Na verdade, nem se empenham em formar leitores. O que interessa são as vendas, a necessidade do lucro imediato.  

Machado de Assis – Em que peca a geração presente? Falta-lhe um pouco mais de correção e gosto; peca na intrepidez às vezes de expressão, na impropriedade das imagens, na obscuridade do pensamento. A imaginação, que há deveras, não raro desvairia e se perde, chegando à obscuridade, à hipérbole, quando apenas buscava a novidade e a grandeza. 

* O que impressiona é que Machado escreveu este artigo em 1873 e se iniciarmos a leitura desconhecendo o nome do autor parecerá que estamos acompanhando uma análise sobre a presente paisagem literária. Novamente, constatamos que pouco evoluímos e estamos aceitando a colonização cultural imposta por um suposto mercado. Alguns escritores contemporâneos estão mais preocupados em ter suas obras traduzidas para o inglês do que receber o abraço dos conterrâneos. Há uma inversão de valores impulsionada pela fome da visibilidade, do sucesso e do dinheiro. Neste trem desgovernado é mais importante ser lido do que ler.

No redemoinho capitalista, os autores neófitos entregam-se à submissão, contratam consultores literários (alguns que vivem fora do Brasil) para aprenderem a escrever e estruturar romances de consumo descartável. Adotam uma linguagem pasteurizada, por ouvirem dizer que será mais fácil atingir maior quantidade de leitores, desprezam a qualidade em nome do alcance de um público mais vasto. O livro vai se transformando numa peça decorativa. 

Os badalados jovens autores, lançados por grandes grupos editoriais, fazem questão de se rotularem como “jovens” (como se isso fosse algum selo de genialidade precoce), entregam as capas de seus livros a depoimentos e chancelas de escritores estrangeiros num patético esforço de ostentar prestígio.   

No nosso acervo teatral, também parco de bons autores, tivemos na década de 80 um movimento cômico batizado de “Besteirol”. Às vezes, parece que o Besteirol se espalhou tardiamente por todo o campo literário nacional, fincando residência preferencial nos romances. No Besteirol que se estabeleceu nos romances não há humor, somente o eco trágico de quem não mais consegue expressar narrativas com a própria voz.  

Machado de Assis – Não se leem os clássicos no Brasil... Não se leem, o que é um mal... Cada tempo tem o seu estilo. Mas estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, - não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum. Outra coisa que eu quisera persuadir a mocidade é que a precipitação não lhe afiança muita vida aos seus escritos. Há um prurido de escrever muito e depressa; tira-se disso a glória, e não posso negar que é caminho de aplausos... Faça muito embora um homem a volta ao mundo em oitenta dias; para uma obra-prima do espírito são precisos alguns mais. 

* Quem esteve na 23ª Bienal do Livro em São Paulo, em 2014, se deparou com o caos. Aquilo se parecia, muito mais com um camelódromo sem lei ou talvez com uma Fashion Week literária de deslumbrados, nunca com um encontro de escritores querendo compartilhar seus trabalhos. Uma calamidade. 

Para a Bienal deste ano, só haveria salvação se Jesus a tivesse invadido e expulsado os vendilhões do templo.  

Machado de Assis – Aqui termino esta notícia. Viva a imaginação, a delicadeza e força de sentimentos, graça de estilo, dotes de observação e análise, ausência às vezes de gosto, carências às vezes de reflexão e pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por alto os defeitos e as excelências da atual literatura brasileira, que há dado bastante e tem certíssimo futuro. 

* Resta-nos rogar que Machado não tenha sido um mero “bruxo” e que o tempo prove que ele também foi o “profeta” do Cosme Velho.

 

 

 

 

 

domingo, 22 de junho de 2014

A ARROGÂNCIA DO MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO

Retratando-me como escritor iniciante, busquei aproximação mais apurada sobre as práticas do mercado editorial no Brasil. Os primeiros contatos com as maiores corporações me revelaram um executivo de perfil arrogante e pouco acessível, é o desenho predominante do personagem que compõe o editor nacional. Soa anacrônico imaginarmos um profissional, que deveria preservar a mente aberta para identificar e promover talentos promissores, aprisionado num casulo de pedantismo que incuba um vulgar caçador de níqueis. Travar um breve diálogo com alguns desses editores significa ser apresentado a uma ironia gástrica que corrói qualquer conexão que poderia ser criada. Editores são ilhas de desprezo.

A produção de livros sofreu fortes acomodações tectônicas nos últimos dez anos, empresas como a Cia das Letras, Objetiva e Nova Fronteira ganharam sócios internacionais com forte participação acionária. Será que isso explicaria a atual supremacia dos títulos estrangeiros em nossas maiores livrarias?

De acordo com as declarações de um profissional que pertenceu aos quadros do grupo Saraiva, o brasileiro reclama de tudo e muitos dos nossos escritores estão fora das livrarias porque não vendem, se vendessem estariam lá. Ou seja, o editor se coloca acima da sua nacionalidade e resume o autor brasileiro como um chorão. Ele diz mais, afirma que no mercado globalizado o leitor não está interessado na pátria do escritor e é por isso que escolhe e tem o direito de ler Game of Thrones.

É indisfarçável o nosso choque ao constatar uma nova ordem disposta a colonizar a literatura em nome do lucro. Os executivos dos grandes grupos editoriais determinam o direito do que se deve ler, mas não contemplam aumentar as opções do que se pode ler. Qualificam o autor brasileiro como um rebelde fracassado, mas esquecem que os balcões de destaque das livrarias são vitrines de aluguel que expõem somente o que rotulam de comercial.

Prosseguindo a conversa, perguntei como eu deveria proceder para tentar publicar um livro de contos, a resposta foi seca: contos só publicam se for amigo do rei ou por tráfico de influência, livros de contos não vendem.  Na verdade, os autores que vendem parecem ser somente aqueles que sentam na cadeira do Jô Soares, encaminhados por grandes agências literárias, que sempre me passaram a impressão de serem as únicas capazes de disfarçar chumbo em ouro.


Interessante que uma das nossas mais parrudas agências do meio carregue um pomposo nome em inglês, a Villas-Boas & Moss – Literary Agency and Consultancy. No site da VBM, um recado: “prioridade para manuscritos com referência ou recomendação”. O pistolão chegou à província dos livros.

- Literatura de qualidade é um nicho menor, é para a elite e a elite sempre foi minoria – revela o meu interlocutor do mercado editorial.

A fala nos faz concluir que ao leitor comum oferecem o farelo dos porcos. Não resta a menor dúvida, vivemos um tempo em que a educação avança, mas a filosofia medieval dos editores continua subestimando e evitando formar melhores leitores. Querem o sucesso imediato, o best-seller, e o sucesso instantâneo prescinde a qualidade.

Pergunto ao meu entrevistado se não é ruim para todos que a literatura se torne um território de mercenários. Antecipando o fim da conversa, o pavão abre a cauda e me dispensa com uma saudação exemplar.

- Caro amigo, essa sua aflição é de muitos, o que eu digo para as pessoas é, escreva por prazer, pra si mesmo... Agora, me desculpe, estou meio ocupado... escrevendo.

No dia em que os bons autores escreverem para as gavetas, talvez as editoras percebam que exilaram os seus mais valiosos operários.

Neste cenário apocalíptico, onde editores pensam como corretores imobiliários, a melhor esperança são as chamadas editoras de fundo de quintal, que seguem em investidas heroicas, se destacando nos relevantes prêmios literários mundo afora, provando que há um anseio em restaurar a literatura como obra de arte.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A NOVA LITERATURA COMO FEUDO DE CELEBRIDADES

A NOVA LITERATURA COMO FEUDO DE CELEBRIDADES

Por Alexandre Coslei

A literatura, tal qual a lendária cidade de Troia, foi um dos últimos bastiães que cedeu ao avanço das barbáries da globalização. Resistiu com bravura à vilipendiação dos valores e à corrupção da alma. No entanto, resistir é inútil, já pressagiavam os Borgs de Star Trek. A arte literária também está sendo assimilada pelo consumismo hedonista para se enquadrar às normas da indústria cultural do século XXI, que é avessa a mergulhos profundos e impõe que as nossas preferências se limitem à epiderme das coisas.

Livros com capas coloridas, chamativas; autor com pose de pop star, patinando deslumbrado sob holofotes e flashes de câmaras digitais. A palavra que renuncia ao conteúdo para se transformar em imagem plástica, mais palpável, palatável e lucrativa. A palavra realocada num mundo onde prevalece o objeto comercial. Book trailers, palcos, escritores-celebridade, feiras literárias como grandes anfiteatros para uma gente bonita mostrar seu valor. É a literatura intimada a ser espetáculo.

O escritor recluso e tímido, que escolheu a solidão para fecundar o pensamento e a visão intimista sobre o mundo, esse está em desuso, perde lugar para o showman e para as faces conhecidas da TV (que também decidiram se enveredar pelas letras). Há poucos dias ouvi uma definição bem humorada sobre isso, estamos na era dos globe-trotters literários. Não, definitivamente não existe lugar ao sol para o misantropo. Ou ele se metamorfoseia em pavão ou que apodreça nos porões do anonimato.

O que se ganha com a literatura midiática? Sem dúvida, arrebanham-se mais leitores, fortalecem-se alguns grupos editoriais, aumentam as tiragens. E o que se perde? A qualidade endógena das obras entrou em decadência, a estética foi depreciada pelo objetivo de atingir leitores menos qualificados e leitores desqualificados geram escritores medíocres. O resultado que se observa é um vácuo na literatura brasileira que inunda as livrarias com títulos estrangeiros, traduções capengas e o cultivo de um gosto duvidoso. Estamos recolonizando a nossa literatura, esse é o preço do estrelato individual. Não é à toa que uma pesquisa recente, realizada em 2014 pelo Jornal O Globo nas principais bibliotecas públicas cariocas, constatou que o interesse dos leitores pelos best-sellers internacionais supera com larga vantagem a consulta por autores nacionais, inclusive, os clássicos.

Algumas poucas trincheiras tentam preservar a literatura como arte, editoras como a Patuá e Confraria do Vento semearam e colheram autores valorosos que emplacaram como finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2014.

Infelizmente, o caráter desta literatura nacional recolonizada, feudo de celebridades, movida por nichos e modismos, não aparenta vontade de reverter seus passos em direção ao lucro e nem exibe remorso pela depredação estética que promove.  Quando tentamos prever um cenário futuro, o panorama que se esboça é nebuloso, imprevisível. Quem sabe, lá na frente, nos deparemos somente com as ruínas de um território devastado e saqueado pela sanha dos ególatras. Uma Troia incendiada. Porém, mesmo diante do trágico desfecho da Ilíada, Aquiles e Heitor, os dois heróis épicos, ainda inspiram o que é eterno. Aos que amam literatura, resta a fé. Acreditar é sobreviver.

sábado, 31 de maio de 2014

A CRÍTICA PROSTITUÍDA


“O crítico literário é um homem que sabe ler e que ensina os outros a ler. ”

-Charles Augustin Saint-Beuve-

 

Um crítico apurado, talvez, não considerasse de bom tom iniciar o artigo com uma citação que beira o clichê. No entanto, em nosso caos cultural, mergulhados na profusão de títulos que são lançados diariamente às livrarias, nem assustaria vermos alguns livros com o carimbo “made in china”.  Sim, a Internet e o Word produzem escritores em escala industrial e quase sempre sem controle de qualidade. Junto com o fenômeno da multiplicação dos livros, surgiram os messias e as oficinas literárias que prometem formar os novos best-sellers do século. A literatura se tornou um mercado pagão. 

Ao olharmos para trás, lembrando de um período não tão remoto, encontramos nomes como Carpeaux, Augusto Meyer, Álvaro Lins, Antônio Cândido, Silviano Santiago. Personagens que atravessaram o século XX avaliando obras e proporcionando, através dos jornais, as críticas de rodapé, eram elas que despertavam o crivo dos leitores. A maioria desses críticos começaram a escrever numa época em que não havia especialização em Letras e Literaturas, elaboravam análises facilmente compreendidas pelo brasileiro médio, os conduzindo ao encontro dos melhores autores e elegendo os clássicos que até hoje enaltecem as bibliotecas. O que houve com a crítica literária? José Castelo, jornalista da Gazeta do Povo, afirma que ela não mais existe. 

Atribuem o ocaso da crítica à implantação da Teoria da Literatura dentro das universidades. As análises, antes acessíveis, ganharam ares incompreensíveis, pernósticos, rodeadas de códigos ininteligíveis ao leitor comum. Enquanto os primeiros críticos brasileiros do século XX avaliavam e avalizavam um livro, os rebentos da Teoria Literária dissecavam cientificamente um texto. A ótica universitária trouxe o peso do enfado. 

Como nada se perde e tudo se transforma, a necessidade do lucro fez nascer no mercado editorial duas deturpações pejorativas: O Publisher e o Resenhista.  

O Publisher veio tomar o lugar do nobre ofício de Editor. Agora, os livros são publicados visando o seu potencial de vendas, a capacidade do autor agregar leitores, a busca de nichos comerciais imbuídos de caráter pecuniário. 

O Resenhista é a versão empobrecida do saudoso crítico literário, é a crítica prostituída. Longe de ser um teórico, ele se coloca como leitor profissional. A resenha não se obriga ao compromisso com a linguagem, nem a conceitos ou tradição. É uma redação sobre um livro e se presta, geralmente, a promover o salto das vendas. Não é incomum percebermos a relação incestuosa entre resenhistas, autores e editoras. Se quiséssemos alçar a resenha ao patamar de crítica, nós a chamaríamos de crítica de patota. Qualquer garoto de 15 anos elabora uma resenha, não é preciso muito, além de ler o livro e desenvolver elogios ou apontar erros. Tudo irá depender da intenção, nunca de um compromisso estético.

Após a revolução da informática, nunca tivemos tanto a necessidade do crítico literário que nos traga novamente a avaliação que avaliza aquilo que se deve ler, que devolva ao livro o status de obra de arte e retire dele o rótulo de produto. Do jeito que estamos, o universo literário representa uma Gotham City onde o Batman é um herói falecido.

 

 

 

 

 

quarta-feira, 21 de maio de 2014





http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed799_discursos_inflamados_contra_os_taxistas

VERDADES DO COTIDIANO

 
 
 
 
 
DA SÉRIE: VERDADES DO COTIDIANO.


 Juro, às vezes, tento fortalecer minha fé no atendimento do funcionário público, mas logo surge um desses verdugos de cartório, que somente com uma caneta consegue impingir as mais dolorosas torturas contra... os desprotegidos contribuintes, e minha crença desaba em céticas ruínas.

Quarta-feira. Compareço ao posto da Inspetoria da Receita Estadual para dar entrada num processo de reconhecimento de isenção de ICMS, o vigilante me aponta o guichê e vou de encontro ao meu destino. Não havia ninguém para me atender, mas uma senhora “quebra-galho” apareceu do nada e me perguntou o que eu desejava. Expliquei a minha demanda e ela me informou sobre a lista de documentos que eu deveria trazer. Ok, voltarei no dia seguinte.

Quinta-feira. Retorno pela segunda vez ao posto da Receita Estadual na Tijuca, caminho até o guichê, encontro um funcionário com pastas abertas e digitando compenetrado.

- É aqui que dou entrada no pedido de isenção de ICMS? – Pergunto.

O funcionário me lança um olhar hostil por cima dos óculos (que logo se transformaria numa expressão de desprezo mesclada com repulsa) e me responde:

- Estou ocupado e tem um senhor na sua frente. Vai ter que aguardar.

O tom foi tão ríspido que só não reagi por que o atendente me lembrou um simpático personagem de desenho animado, o Urso do cabelo duro. Além disso, pressenti que qualquer reclamação poderia ser retaliada com a obrigação de um calvário burocrático que eu preferi evitar. Respondi que aguardaria e me sentei.

Uma hora depois, ele me acena com a mão, era a permissão para que eu me aproximasse. Expliquei o meu caso e estendi a documentação solicitada pela primeira atendente. O Urso do cartório me informa que faltavam documentos, digo que trouxe os documentos que me informaram como necessários no dia anterior, ele pergunta quem me deu a relação e eu deduro a atendente da véspera. O Urso chama pela atendente, mas ela não o atende. Tudo inútil. Ele me passa uma lista complementar a primeira. Novamente, saio frustrado.

Sexta-feira. Terceiro dia, volto ao posto da Receita Estadual. Aproximo-me do guichê e, numa tentativa de transmitir simpatia, pergunto o nome do atendente, o mesmo que me deu a nova lista de documentos.

- Opa, lembrado de mim? Estive ontem aqui. Esqueci foi teu nome? – Introduzo a conversa.

Ele me olha por sobre os óculos sem nenhuma expressão que eu pudesse identificar e responde num murmúrio.

- Anham... Meu nome é Paulo. Vai ter que aguardar.

Sento e espero resignado. Quarenta minutos depois, ele me acena com a mão e corro ao seu encontro como um cão adestrado. Se eu tivesse rabo, não tenho dúvidas que o abanaria. Entrego os documentos. Ele vai ticando tudo com a caneta desconfiada e, ao final, me transmite a trágica notícia.

- Está faltando a xerox da identidade de um dos requerentes.

Senti uma vertigem, um gosto amargo na boca. Contive meus tremores e confirmei que havia trazido a documentação que ele me relacionou. Paulo me volta o olhar gélido que só os que comungam com uma mesa revestida em fórmica sabem transmitir. De repente, quando seus olhos cruzaram com os meus, ele pareceu ter sido tocado por alguma brisa de piedade.

- Bem, como você já veio aqui algumas vezes, vou fazer vista grossa - era a minha anistia.

Ele carimba a papelada e me libera afirmando que não poderia dar prazo para a aprovação, pois o sistema estava com problemas. Nada mais importava, saio feliz daquela cova como um torturado que sobrevive ao seu algoz. Um entusiasmo irrefreável me faz ter vontade de cantar "I'm singing in the rain" e caminho lépido como um degenerado que foi perdoado pelos pecados cometidos. No entanto, um pequeno laivo de vingança quer escapar da minha boca e eu deixo que escorra: vai se foder, Paulo.

sábado, 17 de maio de 2014

BARBA ENSOPADA DE SANGUE - RESENHA DA SÉRIE: DESCONSTRUINDO A CRÍTICA DE ALUGUEL






SÉRIE: DESCONSTRUINDO A CRÍTICA DE ALUGUEL

LIVRO: BARBA ENSOPADA DE SANGUE
AUROR: DANIEL GALERA
EDITORA: CIA DAS LETRAS / 2012

Visitar a Livraria Saraiva, seja onde for, é como entrar numa Blockbuster literária. São livros de autores celebridades como Pedro Bial, Lobão, Fernanda Torres, etc. Além deles, encontramos uma fartura de biografias e edições sobre dragões, ficções com ares medievais, h...istória de vampiros, narrativas de psicopatas caricatos, livros de amor e toda a quinquilharia produzida para um “novo público”. Os melhores livros da Saraiva não ficam nos balcões de destaque, mas empilhados no chão como indigentes das letras.

Obrigo-me a superar qualquer preconceito intelectual que ainda habite o meu universo e compro o título de um desses decantados jovens autores, alardeados como finalistas e vencedores dos mais significativos prêmios literários (nem sempre um marketing sincero, é preciso filtrar). Saio da Saraiva carregando “Barba ensopada de Sangue”, o romance do enaltecido Daniel Galera.

Um protagonista sem nome, cujo estopim da história nasce no suicídio anunciado do pai. Ao mesmo tempo que informa a decisão de se matar, o pai faz o filho prometer que sacrificará a cadela de estimação assim que ele consumar seu intento. O filho promete, mas não cumpre. Ao contrário, adota a cadela e parte com ela para Garopaba com o objetivo de desvendar o mistério ancestral que envolve o assassinato do avô naquele litoral catarinense. Um elemento interessante acompanha o protagonista, ele sofre de uma doença que o faz esquecer o rosto das pessoas e impede que as reconheça mesmo depois de manter contato.

Somados os ingredientes, talvez pudesse se descortinar uma bela trama. Infelizmente, não é o que acontece. Escrito em terceira pessoa, entremeado por diálogos abundantes, o livro não chega a lugar nenhum e parece se perder até do eixo principal, buscando um recurso bobo e pouco criativo para a conclusão do enredo. Durante o decorrer do calhamaço de 422 páginas, somos conduzidos pela rotina vazia do principal personagem, confirmamos o complexo de corno causado por ter perdido uma namorada para o irmão, testemunhamos a readaptação da cadela ao novo dono e passeamos pelas praias invernais de Garopaba através de descrições intermináveis. Um detalhe intrigante nesta nova geração artificial de jovens autores é que a confecção do romance para eles aparenta ser mais um ato de descrever do que o de contar.

Ao término da leitura de “Barba ensopada de Sangue” fica a nítida impressão de que não lemos um romance, mas corremos os olhos por um folder turístico.

A POPULARIZAÇÃO DE MACHADO DE ASSIS E A VULGARIZAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA





** A popularização de Machado de Assis e a vulgarização da literatura brasileira contemporânea **

Por esses dias discutiu-se tanto a popularização dos textos de Machado de Assis que quase alcançamos um tom clichê. A ideia de reimprimir a obra de Machado objetivando a imposição de um vocabulário simplório, que esteja ao alcance do público menos letrado, é somente um reflexo de uma literatura contemporânea açoitada pelas mãos de editoras que escolheram transformar a arte em cifras lucrativas. Recentemente, a escritora Nélida Piñon afirmou que hoje publicam o que vende, e não mais a literatura que fica. Está corretíssima. E qual a literatura que demonstra capacidade de mercadoria no Brasil? São os livros sobre vampiros brasileiros, ficções medievais encarnadas por anjos e demônios, violência sádica e caricata e romances sobre nada que correm centenas de páginas descrevendo litorais e personagens sem sal. 

O que surpreende é a complacência cúmplice de muitos críticos com a subliteratura e raiva revanchista contra quem imagina poder atualizar um clássico literário. O Word, a Internet e o analfabetismo funcional do Brasil abriram espaço para pretensos escritores que produzem em ritmo industrial, mas pouco se importam com estética, pois estão voltados para os quinze minutos de fama e buscam o eldorado que os tornem best-sellers. Às vezes, contam com competentes empresários que abrem as portas da mídia e transformam o que é oco em celebridade, pois no mercado atual é a celebridade que vende. Tal realidade nos remete ao arquétipo explicitado no filme Muito além do Jardim, onde até um suspiro do acéfalo personagem Chance (Peter Sellers) era interpretado como genial. 

Por que hostilizar a tradução populista de Machado e ignorar os nichos literários criados compostos de livros caricatos lançados para conquistar jovens e limitados leitores? Essa é uma discussão que poderia ganhar amplitude inteligente e está se resumindo a um debate provinciano. 

Clássicos sem herdeiros 

Toda literatura é válida, mas as que devem ganhar visibilidade são aquelas que os editores compreendem como comerciais. É assim que se configura o presente mercado editorial brasileiro. O autor a ser valorizado é o que se comporta como um bom gerente de contas e cumpre boas metas de venda com o seu produto. É este o autor que as editoras inserem na mídia, para eles negociam a condescendência de uma parte da crítica e a partir deles criam a farsa do merchandising. 

Numa nação de leitores toscos, Machado de Assis precisa ser reescrito para vender e os autores de sucesso desfilam a face mais pueril e vulgar da literatura em programas de entrevistas e nos cadernos culturais dos nossos periódicos. Talvez, tenha sido por isso que o nosso Machado elaborou aquela sentença magnífica de Brás Cubas, um ato profético: 

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” 

Assim, nossos clássicos vão ficando sem herdeiros e, pelo visto, se transformando em hieróglifos a serem decifrados.